Artigo publicado no jornal Gazeta Mercantil – 21 e 22/06/2000
O capítulo sobre distribuição de renda do mais vendido manual contemporâneo de introdução à economia, o de N. Gregory Mankiw (Editora Campus) conclui de maneira sóbria que as sociedades enfrentam necessariamente um dilema (um trade-off) entre eqüidade e eficiência. O crescimento (a utilização eficiente dos recursos) supõe poupança e portanto uma certa concentração que sacrifica forçosamente a igualdade. Para quem julgar a conclusão desoladora resta o consolo de acreditar que esta é uma fase apenas inicial no processo de desenvolvimento que será sucedida possivelmente por bonança distributiva, como mostraram economistas do calibre de Simon Kuznets e Nicholas Kaldor. Em outras palavras, embora o crescimento não tolere inicialmente excessos na distribuição, uma vez encontrado seu ritmo de cruzeiro, ele é fundamental no combate à pobreza.
A ciência econômica dos anos 1990 contribuiu de maneira decisiva para colocar aquilo que muitos viam como uma lei científica seriamente em dúvida. A questão a que dois economistas do Banco Mundial ofereceram nos últimos dias uma resposta positiva – o crescimento auxilia no combate à pobreza ? – foi simplesmente virada de cabeça para baixo. Ninguém nega que o crescimento seja uma condição necessária para o combate à pobreza. Mas a indagação inovadora consiste em saber se a vitória sobre a pobreza pode ser um estímulo significativo para o próprio crescimento econômico.
Esta inversão da pergunta faz com que o tema da desigualdade não seja objeto simplesmente de políticas sociais compensatórias, mas se incorpore ao âmago da própria economia. Em última análise é disso que tratam Douglass North (prêmio Nobel de 1993), Amartya Sen (prêmio Nobel de 1998) e Joseph Stiglitz (até recentemente vice-presidente senior do Banco Mundial e, antes disso, chefe da assessoria econômica de Bill Clinton).
Um dos mais importantes enigmas de nosso tempo está em compreender as razões pelas quais Estados Unidos e Brasil tomaram rumos tão diferentes apesar de um ponto de partida, no início do Século XIX, bastante semelhante. Para Douglass North (Institutions, Institutional Change and Economic Performance, publicado em 1990 pela Cambridge University Press) a resposta se encontra numa estrutura institucional formada pela Constituição Americana, pelo hábito de valorização do trabalho, pela força dos corpos políticos locais e dos empreendimentos comerciais e por dois outros fatores decisivos: a distribuição de terras (que deu lugar a uma história fundamentada na propriedade agropecuária familiar) e a associação entre um sistema público educacional livre e o estímulo permanente à pesquisa e ao aumento da produtividade.
O que caracteriza o subdesenvolvimento é um conjunto de instituições – isto é, de regras do jogo, de normas e valores que orientam a conduta do dia a dia, de orientações que reduzem a incerteza dos indivíduos – que dissociam o trabalho do conhecimento, que dificultam o acesso à terra e que bloqueiam a inovação. As organizações que emergem deste quadro institucional são altamente eficientes em sua capacidade de inibir o aparecimento dos potenciais produtivos da sociedade e de dificultar as formas não hierárquicas de cooperação em que se pode fundamentar o próprio crescimento. A pobreza, neste sentido, é um freio para o crescimento. É até possível que a economia cresça e que aumente a renda dos mais pobres. Mas ela cresce menos do que se fosse capaz de criar um ambiente propício à valorização das atividades dos mais pobres.
Mas em que consiste esta valorização ? Para Amartya Sen ela não se reduz simplesmente à oferta de bens ou serviços: o desenvolvimento é definido por Sen como o processo que permite a ampliação das possibilidades que os indivíduos têm de fazer escolhas. Daí o título de seu livro recentemente publicado pela Companhia das Letras em excelente tradução de Laura Teixeira Motta: “Desenvolvimento como liberdade”. A liberdade para Amartya Sen não é apenas a ausência de restrições, mas, antes de tudo, a presença das premissas que permitirão aos indivíduos o exercício de suas escolhas. E é exatamente por isso que Sen trabalhou ativamente na elaboração de um Índice do Desenvolvimento Humano, de um conjunto de indicadores que mostrassem em que medida os indivíduos estão capacitados, dotados dos meios materiais e morais que lhes permitirão participar ativamente da vida social e econômica. O estudo da situação alimentar mundial é um claro exemplo em que o crescimento (da oferta global de alimentos) em quase nada contribui para reduzir a fome ali onde ela mais cruelmente se manifesta. Um caso, em outras palavras, em que crescer não basta para melhorar a situação dos mais pobres.
Douglass North e Amartya Sen são citados de maneira abundante no relatório do ano passado do Banco Mundial redigido sob a responsabilidade de Joseph Stiglitz. Duas idéias são importantes para a relação entre eqüidade e eficiência, entre distribuição e crescimento. A primeira apoia-se na constatação de que os países que mais cresceram depois da IIa. Guerra Mundial foram exatamente os que mais distribuíram oportunidades de participação na vida econômica. No caso do Japão e dos Tigres Asiáticos a receita consistiu na ampla democratização do acesso à terra e à educação.
Mas além disso, o Banco Mundial deu-se conta, de maneira amarga – com base na experiência dos antigos países socialistas – que a liberalização dos mercados não pode ser encarada como a poção mágica do crescimento. Mais que isso, longe de ser um ponto neutro, anódino onde se cruzam interesses autônomos de compradores e vendedores, o mercado é uma instituição construída há séculos e que, como bem mostrou Amartya Sen, não contempla de maneira equânime todos os que dele aspiram participar. O crescimento econômico pode ser reforçado por mais esta forma de combate à desigualdade que é a promoção ativa do acesso ao mercado por parte das populações mais pobres. Aqui também a vitória na luta contra a pobreza pode ser uma das base do próprio crescimento econômico.
Ricardo Abramovay é professor livre-docente do Departamento de Economia da FEA e do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental (PROCAM) da USP – abramov@usp.br