Prefácio ao livro de John Wilkinson “O Mundo dos Alimentos em Transformação”

Prefácio a “O Mundos dos Alimentos em Transformação. Mesmos pratos. Novos ingredientes, processos e atores”  (Ed. Appris. RJ).

A leitura deste livro não é obrigatória apenas para os especialistas em agricultura e alimentação. Escrito em linguagem totalmente acessível ao grande público, ele mostra que está em curso uma revolução até hoje pouco percebida não só pelos leigos, mas pela esmagadora maioria dos especialistas e que envolve o cotidiano de cada um de nós e, mais que isso, o epicentro da vida econômica brasileira. A alimentação está, globalmente, se emancipando de sua dependência milenar com relação ao uso do solo e à criação animal. O meio rural está deixando de ser o ambiente predominante de abastecimento alimentar. Proteínas artificiais e agricultura vertical ocupam hoje a fronteira científica e tecnológica do sistema alimentar, recebem investimentos gigantescos e fazem parte das políticas públicas das maiores potências globais. É um processo ainda incipiente, mas cujo vigor faz dele um vetor decisivo de transformações sociais.

Um alerta se impõe: não se trata, ao menos por enquanto, de julgar este movimento, de se posicionar a favor ou contra, mas, antes de tudo, de compreendê-lo. E esta compreensão vai muito além das inovações tecnológicas do sistema alimentar e de seu impressionante ritmo de avanço, inclusive no Brasil. Ela envolve movimentos e representações sociais. Em vez de tratar os mercados como caixas pretas cujas regras de funcionamento são estabelecidas universalmente e de antemão, os novos padrões alimentares emergentes são abordados neste livro como construções sociais resultantes de um conjunto variado e muitas vezes surpreendente de forças não apenas econômicas, mas igualmente culturais e até políticas. Este é um exemplo emblemático de uma abordagem político-cultural dos mercados.

Os estudos anteriores de John Wilkinson e de tantos de seus alunos sobre mudanças tecnológicas que antecederam as atuais (como por exemplo a que generalizou o uso de transgênicos na agricultura) já adotavam este horizonte, ao mostrarem a inépcia das empresas que introduziam esta inovação em construir uma narrativa que a tornasse aceitável aos olhos dos consumidores. Os transgênicos foram marcados por uma reputação negativa que os caracterizava como “frankenfoods” e que conduziu a uma depreciação do próprio valor dos produtos desta tecnologia e à exigência de que fossem diferenciados dos “não transgênicos”. Da mesma forma, o colapso atual das tecnologias da revolução verde vai muito além de sua dimensão material e envolve temas de natureza ética como o bem-estar animal e, de forma mais geral, a responsabilidade humana na relação entre sociedade e natureza.

John Wilkinson mostra, com dados de imensa atualidade, que a construção social dos mercados de carnes artificiais e de folhas e verduras produzidas verticalmente está conseguindo contornar as críticas que marcaram tanto a revolução verde como os organismos geneticamente modificados. Isso se relaciona não apenas às próprias tecnologias, mas também aos protagonistas e a sua capacidade de fundamentar o que oferecem em narrativas que incorporam a cultura dos movimentos sociais contestadores do sistema agroalimentar atual.

O livro mostra, no mundo todo, um montante impressionante de investimentos em startups voltadas às quatro modalidades de proteínas alternativas (a resultante da combinação de vegetais, a que vem da multiplicação celular, a fermentação de precisão e a que se apoia em insetos) e na agricultura de clima controlado em edificações urbanas. Tão importante quanto as tecnologias é que as empresas portadoras destes investimentos se apresentam ao público como defensoras de causas ambientais. São, para usar a expressão em inglês, mission-oriented. Seus fundadores aderem, na maior parte das vezes, ao vegetarianismo ou ao veganismo. Os novos produtos encontraram ferrenhos defensores no campo dos movimentos ambientalistas. George Monbiot, certamente o mais importante jornalista ambiental do mundo, colunista do The Guardian e Ezra Klein, animador de um prestigioso podcast do New York Times, ambos veganos, estão entre eles. E os dados que o livro apresenta sobre a adesão ao vegetarianismo e ao veganismo mostram bem que não se trata de um movimento marginal ou irrelevante, inclusive no Brasil, onde, segundo pesquisas recentes, cerca de 30 milhões de pessoas são adeptas destas modalidades alimentares.

John Wilkinson mostra também que os próprios investidores nas startups vêm de ambientes empresariais bem distintos daqueles que marcam tradicionalmente a agricultura e seus setores a montante e a jusante. Na China, por exemplo, a Fujian Sanan Group, uma de suas maiores empresas de optoeletrônica investe no setor de folhosas. As gigantes digitais tornaram-se protagonistas importantes em diferentes modalidades de proteínas artificiais. E os grandes frigoríficos globais, sem abandonar, claro, suas produções convencionais, voltam-se de forma muito significativa a estes novos produtos.

Talvez a imagem da revolução não seja a mais adequada para caracterizar este processo. Os próprios investimentos chineses em infraestrutura voltada à exportação de soja têm um prazo de maturação, como mostra este livro, que embute a expectativa de um prazo longo em que a oferta de produtos animais no país dependerá ainda da soja que ele recebe do Brasil. Mas o empenho em reduzir esta dependência por meio de investimentos públicos e privados nas novas tecnologias é nítido. Mais que isso, John Wilkinson mostra que proteínas artificiais e cultivos em ambientes de clima controlado já formam uma espécie de ecossistema global que envolve os Estados Unidos, a União Europeia, startups de Israel e do Brasil, que se torna um protagonista de imensa relevância na América Latina e globalmente no campo destas inovações.

Este livro abre caminho a discussões estratégicas para o Brasil. O descolamento entre a alimentação e a agropecuária, caso se aprofunde tem duas consequências centrais. A primeira é que o lugar da agropecuária, tal como ela está estruturada no Brasil, a centralidade econômica, política e cultural daquilo que se banalizou na expressão agro (e que envolve a potência exportadora, o lugar de destaque na formação da riqueza, mas igualmente a ameaça permanente sobre a biodiversidade e o sistema climático da agropecuária) está sob contestação.

É verdade que esta contestação vem também do esforço de movimentos sociais e de iniciativas empresariais que buscam uma agropecuária regenerativa e cujos exemplos práticos de sucesso se multiplicam. A agroecologia tende a ver com desconfiança este desacoplamento entre a alimentação e uso do solo (e entre proteínas e criações animais). Já há uma literatura crítica caracterizando as carnes vegetais como parte dos alimentos ultraprocessados, embora, ao menos até aqui, o mesmo não possa ser dito da fermentação de precisão, do cultivo celular e do uso de insetos como fontes de proteínas.

A agroecologia e as tecnologias apresentadas neste livro são, ao que tudo indica, as duas principais modalidades críticas ao sistema alimentar contemporâneo. O que John Wilkinson mostra é que não só os investimentos e as pesquisas nestas novas tecnologias são crescentes, mas que elas estão sendo ativamente legitimadas por um aparato cultural que as apresenta como a mais viável alternativa ao colapso do que tem sido o empenho em aumentar a oferta agropecuária pelos métodos até aqui predominantes.

A segunda consequência central destas tecnologias é, de certa forma, geopolítica. A expansão da soja brasileira para o Centro-Oeste volta-se cada vez mais para suprir as necessidades em proteínas animais da população chinesa cuja velocidade de urbanização é superior ao que foi a do Brasil. Ao mesmo tempo, a China quer reduzir de forma substancial esta dependência, razão pela qual incluiu as tecnologias aqui estudadas em seu plano quinquenal. O perfil do sistema agroalimentar mundial vai-se alterando e tanto as startups que promovem estas inovações como os pesados investimentos em sua difusão formam um sistema bem diferente daquele que se consolidou com a integração da soja nos mercados globais dos últimos vinte anos.

Este é um movimento que ameaça o poder das forças que dominam a agricultura hoje e que seguem na expectativa de que aumentar a produtividade e melhorar as condições de infraestrutura para ampliar a competitividade da soja e da carne na China e no restante da Ásia são os melhores caminhos para o crescimento brasileiro. Tendo em vista o declínio da indústria e da competitividade industrial brasileiras, só pode inspirar preocupação a importância, na formação da riqueza e nas exportações, de atividades que a fronteira científica e tecnológica atual torna cada vez menos relevantes do ponto de vista global. E no entanto, é esta irrelevância que ganha força e representação política: a tentativa do Ministério da Agricultura, em outubro de 2022, de impedir que os produtos destas novas tecnologias sejam denominados de carne, leite ou manteiga (termos que só poderiam aplicar-se aos obtidos por métodos convencionais) é um reflexo claro do poder destas forças incumbentes.

A abordagem das inovações no sistema alimentar global não apenas com base em tecnologias disruptivas, mas em movimentos sociais e em seu repertório cultural permite a John Wilkinson apresentar um conjunto de iniciativas voltadas à produção alimentar nas cidades. Aí também a alimentação se emancipa das formas convencionais de agricultura. Os movimentos de fomento à agricultura urbana (como o Food Justice Movement) e o empenho para a emergência de cidades resilientes apoiadas em soluções baseadas na natureza são fundamentais não só para o abastecimento, mas para que o acesso à alimentação se torne vetor de fortalecimento político e cultural das populações urbanas, sobretudo as periféricas. As experiências e a história das relações entre campo e cidade apresentadas no livro são altamente inspiradoras para políticas de renovação urbana. Faz parte desta renovação um movimento que converte as “smart cities” em “green cities” e, mais recentemente, em “food cities”.

Este é, portanto, um livro cujo interesse não se restringe aos especialistas em agricultura, em alimentação, em desenvolvimento rural ou em cidades. A maior virtude do trabalho de John Wilkinson é mobilizar uma vasta literatura teórica e histórica para pensar a relação orgânica entre estes elementos de forma profunda e didática, contribuindo assim para uma nova abordagem do próprio desenvolvimento brasileiro e de sua inserção global.

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Caio Lorena Bueno
Caio Lorena Bueno
1 ano atrás

Quando chegará ao mercado a carne proveniente de células tronco?

Andiaria Telma Lopes
Andiaria Telma Lopes
1 ano atrás

Excelente preocupação,com nossa segurança alimentar.

alanya escort
11 meses atrás

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