Tendências/Debates p. 3 – 4/06/2023
A alimentação tornou-se um vetor de disseminação das doenças que mais prejudicam a saúde humana e mais matam no mundo contemporâneo. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) a incidência de enfermidades não contagiosas (pressão alta, diabetes, câncer e cardíacas) dobrou nos últimos trinta anos. Sobem a 17 milhões anuais as mortes decorrentes da má nutrição, mais que o dobro do total de vítimas da Covid 19 (sete milhões).
A obesidade, que atingia pouco mais de 10% da população dos Estados Unidos ao início dos anos 1970, chega hoje a 40% do total. E ela está crescendo no mundo todo. Os custos dos impactos da má nutrição na saúde humana e no meio ambiente são calculados, em documento publicado no âmbito da Cúpula sobre Sistemas Alimentares das Nações Unidas, em quase US$ 20 trilhões, mais que o dobro do valor do consumo alimentar global.
Estes dados não poderiam ser mais paradoxais. Afinal, após a Segunda Guerra Mundial, a prioridade global (consagrada pela Revolução Verde dos anos 1960) consistia em aumentar a produção, a durabilidade dos produtos nas prateleiras e a garantia de sua sanidade. Esta prioridade foi, em parte, alcançada, contribuindo para aumentar a oferta agroalimentar.
Mas a base deste desempenho agropecuário e industrial da segunda metade do Século XX é a monotonia das paisagens agrícolas, das raças responsáveis pela maior parte da oferta de carnes e do próprio consumo derivado de produtos industriais. A humanidade conhece mais de sete mil produtos comestíveis, dos quais mais de 400 são passíveis de cultivo. No entanto, 90% da alimentação humana concentra-se em quinze produtos e 60% em não mais que quatro. Amplia-se a distância entre a produção alimentar e o prato das pessoas, o que compromete a valorização das culturas alimentares e culinárias locais.
Esta concentração representa imenso risco geopolítico: dois terços da oferta agropecuária estão em apenas cinco países, um risco sistêmico que a invasão russa à Ucrânia trouxe à tona. E ao homogeneizar largas extensões da paisagem, ampliam-se os impactos destrutivos dos eventos climáticos extremos, mostrando a baixa resiliência do atual modelo global de crescimento agropecuário.
A ideia de que a monotonia da oferta agropecuária poderia ser compensada pela adição de componentes que enriqueceriam nutricionalmente o alimento industrializado revelou-se uma armadilha, cuja denúncia está revolucionando as ciências da nutrição do século 21. Se na segunda metade do século passado, a abordagem da obesidade se apoiava no excesso de calorias, relativamente ao gasto de energia das pessoas, os especialistas hoje chamam a atenção para o consumo excessivo e prejudicial de produtos fabricados com quantidade ínfima de alimentos e doses doentias de elementos que não fazem parte da natureza ou da cozinha e interferem no sistema metabólico de regulação do apetite, com consequências desastrosas sobre a microbiota intestinal. A pesquisa brasileira é internacionalmente reconhecida como pioneira na descoberta da importância dos produtos ultraprocessados como promotores das doenças que mais matam no mundo. É ela que inspirou não só nosso Guia Alimentar como a maior parte dos adotados em mais de 100 países do mundo.
O G20 tem a responsabilidade de promover mobilização global contra a pandemia de obesidade, o que supõe profunda transformação não só na agropecuária, mas, sobretudo, na qualidade daquilo que a indústria de alimentos oferece hoje à sociedade. Esta é a mensagem central do documento elaborado pela Cátedra Josué de Castro da Faculdade de Saúde Pública da USP e o Instituto Comida do Amanhã e acolhido pelo G20, que se reúne este ano na Índia (https://www.orfonline.org/research/promoting-diversity-in-agricultural-production/).
O Brasil vai presidir a próxima reunião do G20, em 2024: é fundamental que o combate à monotonia do sistema agroalimentar ocupe o epicentro da pauta.
Ricardo Abramovay Professor titular da Cátedra Josué de Castro da Faculdade de Saúde Pública da USP e autor de Infraestrutura para o desenvolvimento sustentável da Amazônia (Ed.Elefante).
Juliana Tângari Diretora do Instituto Comida do Amanhã.
Ana Paula Bortoletto professora da Faculdade de Saúde Pública da USP e pesquisadora da Cátedra Josué de Castro.
Nadine Marques Nutricionista e pesquisadora da Cátedra Josué de Castro.
Estela Sanseverino Mestranda em Ciência Ambiental (PROCAM/USP) e pesquisadora da Cátedra Josué de Castro
Luisa Gasola Lage doutoranda e pesquisadora do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (NUPENS/FSP/USP)
https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2023/06/o-g20-e-a-monotonia-do-sistema-agroalimentar.shtml
Excelente artículo. El modelo de consumo y producción agrotóxicas atenta contra la salud. Proponer otro sistema alimentario beneficia la salud humana y respeta la biodiversidad natural.
Excelente! Uma análise perfeita, numa abordagem multidinâmica!!!