Anitta faz a “Garota do Rio” ir muito além de Ipanema

UOL Tab passa a ter conteúdos diários – Meio & Mensagem3/05/2021

A Garota do Rio não é a “coisa mais linda, mais cheia de graça“. Ela não se desloca num barquinho que vai e vem ao cair da tarde. Ela não lança um olhar discreto que inspira o “se voltar vou atrás” e tampouco “tem este mar no olhar“. Ela não é branca, magrinha, nem “anda bem devagar que é pra não se cansar“.

Ela é quente, não hesita em se apresentar como gostosa, rejeita o lugar de modelo com roupas finas nas passarelas ou formas perfeitas nas praias e ostenta suas “grandes curvas”. E, sobretudo, quer mostrar que vem de um lugar que, quem amou e ama a “Garota de Ipanema” e a Bossa Nova, não conhece. Ou só conhece pelo sofrimento e pela tragédia estampados nos jornais.

Não se trata de subestimar a importância poética, melódica e harmônica da Bossa Nova para a cultura brasileira e para a cultura universal. Nossos gênios musicais contemporâneos (Chico, Caetano, Gil, Edu Lobo, mas também Milton, João Bosco, Guinga, Lenine e tantos outros) são herdeiros diretos do que fizeram Tom Jobim, Carlos Lyra, Bôscoli, Menescal e Marcos Valle. No prefácio ao maravilhoso songbook de Edu Lobo, Tom Jobim sentencia: “eu te saúdo, em nome de Heitor Villa-Lobos, teu avô e meu pai”. Na cultura ocidental, Brasil e Estados Unidos têm a música popular de maior profundidade e sofisticação.

Não se trata, tampouco de subestimar a capacidade que a música popular brasileira sempre teve, desde o que hoje se considera o primeiro samba (“Pelo telefone“, de Donga e Mauro de Almeida, gravado em 1916), de denunciar o arbítrio, as desigualdades, o racismo e mesmo o machismo, como em “Golpe errado” de Geraldo Pereira, na linda interpretação de Ciro Monteiro. Maria Moita de Carlos Lyra e Vinícius é um outro exemplo de denúncia da submissão feminina e, ao mesmo tempo, contra a opressão de classe.

Mas o clipe de Anitta vai além disso. Ele é muito mais que a acusação fundamental em torno do lugar subalterno, sofrido, oprimido, esmagado em que a mulher — e sobretudo a mulher negra — vive. Wilson Batista, denunciando a moça que “parecia uma tocha humana rolando pela ribanceira, a pobre infeliz teve vergonha de ser mãe solteira” ou Nelson Sargento se insurgindo (na linda voz de Paulinho da Viola) contra o “falso moralista” que “até vedete você diz não ser artista” exprimem este drama, exposto igualmente nas mulheres de Atenas de Chico Buarque ou no quanto “este cara tem me consumido” de Caetano Veloso.

Em primeiro lugar, Anitta promove o que de mais importante ocorre hoje na cultura musical e poética contemporânea, que Lawrence Lessig, professor titular da Faculdade de Direito de Harvard, chamou de Remix e que Gilberto Gil exaltou nas inúmeras canções que dedicou aos impactos da revolução digital, desde “Cérebro Eletrônico” até Pela Internet 2. Ela parte da Garota de Ipanema e, sobre esta base, avança para batidas, melodias e imagens típicas do funk. A forma irônica (mas linda) como a Garota de Ipanema aparece em seu cenário corriqueiro, num dia de luz, festa de sol, um carro bacana, bailarinos broadwayanos e vai se transfigurando em direção ao Piscinão de Ramos revela uma estética surpreendente e incômoda.

É uma poesia que choca por não cultivar a expressão sutil e alegórica: se a Garota de Ipanema era “a coisa mais linda”, a do Rio é simples e diretamente gostosa, com suas celulites à mostra, suas curvas imensas, sem o “balanço zona sul”, mas com a exposição provocadora, direta, sufocante, desprovida de flerte com meias palavras. Esta forma foi adotada por Caetano e Gil em Haiti e por Chico Buarque em Caravanas, onde o “sol torra os miolos” e na paisagem está não o barquinho, mas “esses estranhos suburbanos tipo muçulmanos do Jacarezinho”, com “picas enormes” e cujos “sacos são granadas”.

Anitta, de certa forma, vai além num sentido fundamental: em seu clipe, não há filtro que purifique a fala direta das meninas. Como na Dança do Passinho ou no que Hermano Vianna genialmente e de forma precursora estudou no Mundo Funk Carioca, o clipe de Anitta expõe o que mesmo a visão crítica, culta, antirracista, progressista e libertária tem imensa dificuldade de ver, ou seja, esta expressão crua, direta da cultura popular não como gostaríamos que ela fosse, mas como ela é.

Mais que isso: num momento em que o fanatismo de extrema-direita procura por todos os meios garantir o lugar quieto, submisso, reprodutor e obediente da mulher, é difícil pensar num grito mais revolucionário e emancipador que “garotas gostosas, de onde eu venho, nós não parecemos modelos”.

A luta contra as mais variadas formas de discriminação exige que se exponham abertamente não só os diferentes pontos de vista, mas as diferentes formas de se estar no mundo, com suas estéticas, suas cores, suas vozes, seu “jeito de pongar no bonde“, suas gingas, seu humor, suas expressões, como fez Anitta no clipe.

O “preto norte-americano forte, com um brinco de ouro na orelha“, cantado por Caetano Veloso, foi às ruas e está fazendo os EUA repensarem a função da polícia nas sociedades contemporâneas. Se Joe Biden apresentou ao mundo, no vídeo de seus 100 dias de governo, um ministro do trabalho assumidamente gay, uma ministra transgênero, duas mulheres em postos de comando das Forças Armadas, um negro no Ministério da Defesa e o orgulho por anunciar pela primeira vez na história que o país tem uma vice-presidente negra, isso vai muito além de habilidade política. Reflete a força de um conjunto de movimentos que, ao se concentrarem na importância de suas identidades, moldaram o início de uma verdadeira política universal voltada à valorização da diversidade. São estes os atores, com as contribuições político culturais que lhes são próprias (e suas manifestações artísticas), que estão permitindo, nos EUA, que a vitória sobre a extrema-direita represente muito mais que uma volta ao que havia antes de o poder ser exercido por um psicopata.

A luta pelo desenvolvimento sustentável não se reduz a clima, postos de trabalho e respeito às instituições representativas. Ela é fundamentalmente uma luta pelo valor da diversidade para as sociedades humanas e, neste sentido, além de sua beleza, o clipe de Anitta desperta as melhores esperanças democráticas.

https://tab.uol.com.br/colunas/ricardo-abramovay/2021/05/03/anitta-faz-a-garota-do-rio-ir-muito-alem-de-ipanema.htm

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sonia m b oliveira
sonia m b oliveira
3 anos atrás

Ricardo, sua coluna e uma das melhores coisas que tenho lido nos ultimos tempos. Grande abraco.

Silvana Bahia
Silvana Bahia
3 anos atrás

Que texto maravilhoso! Adorei.

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