A economia na intimidade e a intimidade na economia

A vilã da novela das oito aceitou um R$ 1 milhão do jovem empresário (Léo) que quer dela se aproximar e ganhar seu apoio na luta pela guarda do filho de um namoro apaixonado de juventude, cuja existência ele desconhecia e cuja mãe morreu no parto.

Artigo publicado no jornal Valor Econômico em 23/02/2007.

—————————————————————-

– Você está vendendo nosso neto, Marta. Isso é dinheiro sujo!

– Dinheiro só é sujo quando é pouco, Alex, entenda isso de uma vez por todas.

A vilã da novela das oito aceitou um R$ 1 milhão do jovem empresário (Léo) que quer dela se aproximar e ganhar seu apoio na luta pela guarda do filho de um namoro apaixonado de juventude, cuja existência ele desconhecia e cuja mãe morreu no parto. Para o avô do menino – Alex, que o criou até aqui como se fosse um pai – uma indignidade, que só confirma o fato de Marta nunca ter amado a filha nem o neto que a ela sobreviveu. Para Léo, o jovem empresário, que deu o dinheiro, nada mais justo que ressarcir os avós por todas as despesas que tiveram com a educação do menino até aqui, ganhando uma importante aliada – Marta, a avó – na luta pela conquista da guarda do filho. No coração da trama criada por Manoel Carlos – e que atinge, muitas vezes, mais de 60 milhões de brasileiros – um dos pilares da própria vida social: a relação entre intimidade e economia, a permanente confusão entre vida pessoal e interesses materiais, a mistura de afeto e dinheiro.

As ciências sociais contemporâneas abordam a questão sob três registros diferentes, com conseqüências que vão muito além da maneira como cada um de nós organiza sua vida pessoal. O primeiro deles é o que coloca dinheiro, economia e interesses materiais, por um lado, evida pessoal, afetiva e íntima, por outro, em pólos opostos, como mundos hostis. É a posição de parte fundamental da esquerda européia contemporânea e cuja elaboração mais sofisticada vem de André Gorz em “Metamorfoses do Trabalho – Crítica à Razão Econômica” (Annablume): o fim da União Soviética tornou ainda mais evidente a impossibilidade de construir uma sociedade cujo abastecimento material seja inteiramente assegurado pelo Estado. Assim, o mercado tem um papel decisivo quando se trata de setores – como, por exemplo, os de alta tecnologia – cujo progresso supõe inovação e concorrência. Ninguém ignora, porém, que estes setores são poupadores e não criadores de trabalho. Portanto, as sociedades contemporâneas aumentam sua riqueza ao mesmo tempo em que reduzem as oportunidades de emprego nestes setores de ponta. É completamente absurdo tentar resolver este problema introduzindo relações de mercado ali onde elas não fazem o menor sentido para a sociedade: nos cuidados pessoais, na atenção aos idosos e às crianças, nas relações comunitárias e de proximidade, na preservação do meio ambiente. São áreas em que a eficiência não vem da competição anônima, impessoal e instrumental, mas do afeto e da confiança despertada por universos partilhados de forma vivida. Conforme a sociedade vai ficando mais rica, ela poderá oferecer uma renda – de cidadania – a cada um de seus habitantes e estes não dependerão do mercado para sobreviver. Irá ao mercado quem quiser, por um tempo determinado e com a opção de consagrar- se a dimensões da existência que não passam pela racionalidade econômica. O principal desafio da esquerda contemporânea – e nisso Gorz tem a companhia de autores como Toni Negri e Alain Touraine – é impedir que a racionalidade econômica tome conta de esferas da vida social que não lhe dizem respeito. Os mundos hostis não podem misturar-se, assim como é inaceitável para Alex o milhão aceito por Marta.

Com seu enriquecimento, a sociedade poderá oferecer uma renda aos habitantes e estes não dependerão do mercado

A segunda posição tem como expressão intelectual máxima a obra do prêmio Nobel de economia Gary Becker: todas as relações humanas podem ser compreendidas em termos econômicos, nelas não há “nada mais que interesses”. É claro que os defensores desta opinião não partilham obrigatoriamente o cinismo de Marta: mas ampliar o domínio da racionalidade econômica, deixar o mercado funcionar livremente é a melhor maneira de resolver os grandes problemas da organização social.

Entre os “mundos hostis” de Alex e o “nada mais que dinheiro” de Marta, a sociologia econômica contemporânea procura elaborar uma posição alternativa a partir do princípio de que mercados não são esferas autônomas, obscuras, poluídas por aquilo que em nós temos de pior – os interesses – em oposição à clareza dos afetos, da proximidade onde revelamos nosso ser profundo e verdadeiro. É a esta oposição entre mercado e sociedade – e contra a redução da sociedade a “nada mais que mercado” – que Viviana Zelizer dedica seu último livro: “The purchase of intimacy” (Princeton University Press). Três domínios são por ela particularmente estudados: a vida de casal, os cuidados com entes queridos (care) e as relações entre as pessoas no interior dos domicílios.

A idéia central de Zelizer é que o uso do dinheiro nas relações pessoais tem significado permanentemente construído e reconstruído pelos indivíduos e que fora de suas relações sociais concretas e específicas é impossível compreender e julgar se o dinheiro está entrando de forma invasiva para corromper costumes – como no tráfico de pessoas – ou se exprime apenas uma das muitas dimensões de que se compõem os laços humanos. As fronteiras entre o que é ou não aceitável são erguidas pelos indivíduos – e pelas organizações – e nestas fronteiras eles definem suas próprias relações. O importante é que não existe uma esfera que pode ser definida em tese como externa ao mundo do dinheiro e outra em que só o dinheiro conta. Mesmo nas relações eróticas, a presença do dinheiro não é sempre e necessariamente sinal de prostituição, como bem mostra o trecho do livro dedicado ao estudo do comportamento das “taxi dancers” dos anos 1930. A base empírica do trabalho de Zelizer são processos na justiça norte- americana movidos por casais, por pessoas encarregadas de cuidados domésticos e por conflitos domiciliares, desde o século XIX. A própria justiça é obrigada a elaborar categorias que lhe permitam julgar se presentes de noivado devem ser devolvidos ou se constituem uma espécie de indenização à ruptura do compromisso. Nos cuidados com pessoas necessitadas, Viviana Zelizer destrói a idéia tão freqüente segundo a qual se a dedicação é genuína, então não pode ser por dinheiro, e se for por dinheiro é que não há dedicação. Por fim, o livro mostra como a vida domiciliar é atravessada por relações que misturam permanentemente afeto e dinheiro e que a separação rígida entre estas duas esferas provoca situações injustas como a de considerar que o trabalho doméstico nada mais é que a expressão do afeto da mulher por sua família.

O livro de Zelizer é mais um exemplo desta importante corrente do pensamento social contemporâneo – a sociologia econômica – que procura estudar a inserção do mercado na vida social e que abre um horizonte promissor diante do pessimismo decorrente da tese dos “mundos hostis” ou do conformismo contido na idéia do “nada mais que interesses”. Se a economia está em nossa intimidade e se nossa intimidade contém dimensões econômicas fundamentais, isso significa que o dinheiro e o mercado não podem ser tomados como categorias claras e distintas cujo significado objetivo é o de nos distanciar necessariamente daquilo que somos e de nossas relações humanas mais verdadeiras. Portanto, influir sobre a maneira como se organizam os mercados, imprimir a esta organização conteúdos que não faziam parte das intenções iniciais de seus protagonistas é um meio decisivo de mudança social nos dias de hoje.

Ricardo Abramovay é professor titular do Departamento de Economia da FEA, do Programa de Ciência Ambiental da USP e pesquisador do CNPq 

0 Shares:
0 Share
0 Tweet
0 0 votos
Classificação do artigo
Inscrever-se
Notificar de
guest
1 Comentário
mais antigos
mais recentes Mais votado
Feedbacks embutidos
Ver todos os comentários
Talvez você goste

Custos de uma política social necessária

Programas de crédito visando populações de baixa renda têm como objetivo central reduzir o que as ciências sociais contemporâneas têm chamado de assimetria de informação: em termos globais, ninguém ignora que os pequenos tomadores de empréstimos tendem a ser bons pagadores e que