15/07/2020
Não poderia ser mais diversa a formação teórica e a orientação ideológica de cada um dos dezessete ex-ministros da Fazenda e ex-presidentes do Banco Central que lançaram, nesta terça-feira (14), o documento “Uma convergência necessária: por uma economia de baixo carbono”.
Por maiores que sejam suas diferenças sobre política fiscal, equilíbrio das contas públicas, política tributária, eles conseguiram responder a uma pergunta que não faz parte do repertório habitual dos economistas: para onde o Brasil deve crescer?
O título do documento pode ser enganoso e é necessário insistir num ponto básico: não se trata de um texto de natureza “ambiental”. Ele vai muito além disso e tem por eixo a formulação das bases do crescimento econômico brasileiro para os próximos anos. O que está em questão não é a necessidade de que a economia do País cresça. A discussão tampouco versa sobre temas de natureza fiscal ou tributária. O que o documento procura é responder à pergunta: qual o sentido do crescimento brasileiro?
A resposta é inequívoca: o crescimento deve-se voltar a diminuir a emissão de gases de efeito estufa estufa e o Brasil não pode (nem precisa) continuar sacrificando seu capital natural, se quiser não só crescer, mas ocupar lugar relevante na economia global. Esta ambição faz do documento um texto de importância histórica.
São três as circunstâncias que explicam seu lançamento, neste momento. A primeira refere-se ao grau de irracionalidade a que chegaram não só as políticas ambientais, mas as de saúde pública, a cultural e o conjunto de sinalizações que o Poder Executivo vem transmitindo ao país desde que assumiu e que já prometia durante a campanha eleitoral.
Negacionismo climático, aversão ao multilateralismo democrático, fomento de notícias falsas, ameaças a movimentos sociais, ataques ao capital natural do país e aos povos da floresta foram apresentados como sinônimo de apoio ao setor privado. Na verdade, não passam de formas de consolidar seitas a que, um ano e meio atrás, parecia pertencer o futuro mundial, a partir da vitória de Donald Trump.
O poder dessas seitas (hoje declinante) amplia a insegurança dos investimentos privados, repudia a inovação tecnológica e, no caso brasileiro, se apoia no ideal de perpetuar uma economia extrativista que, em última análise, encontra-se na raiz de nossa estagnação. O absurdo da complacência e do estímulo à invasão de terras indígenas e públicas na Amazônia se apoia no pretexto delirante de que é preciso apoiar, seja como for, a extração de nossas riquezas contra interesses estrangeiros, que temeriam (sob argumento fantasioso) o poder que elas poderiam dar a nosso país nos mercados mundiais.
O que o modelo mental dos defensores destas ideias não lhes permite perceber é que a competitividade contemporânea não consiste na capacidade de vender produtos agrícolas e minerais a baixo preço, e sim na habilidade de fazer do conhecimento, da inteligência e da informação a base de relações comerciais mais promissoras. Mas reconhecê-lo supõe valorizar a ciência, a tecnologia, a diversidade e a abertura intelectual, capaz de fomentar empreendedorismo inovador. Nada poderia ser mais distante da mentalidade que toma conta da administração pública brasileira.
E é daí que vem a segunda circunstância explicativa do manifesto. Não é à toa que o texto tem início mencionando a pandemia. É que o enfrentamento da Covid-19 vai exigir um conjunto gigantesco de gastos e investimentos públicos, o que suscita a pergunta: qual deve ser a orientação? Antes da pandemia, a força dos interesses constituídos e das culturas empresariais consolidadas fazia com que os investimentos privados e públicos se orientassem por aquilo que as empresas e os governos já fazem, pois aí situavam-se, em princípio, as rotas já conhecidas e de menor risco. Os investimentos públicos voltados a imprimir dinamismo a uma economia combalida são tão altos que abrem caminho a que a orientação deste esforço seja pensada não simplesmente para continuar a vida como era antes, mas para que eles auxiliem na resolução dos grandes problemas que enfrentamos.
A terceira circunstância explicativa do manifesto é que os dois problemas para os quais o manifesto propõe soluções são objeto de crescente consenso internacional: desigualdades e crise climática. O que o documento ambiciona é acompanhar um movimento global que não se limita a preconizar redução de barreiras comerciais para intensificar o comércio, mas que condiciona essa ampliação à forma como os bens e serviços são fabricados. Não poderia ser mais tacanho o argumento do vice-presidente da República de que as preocupações globais com o desmatamento da Amazônia refletem interesses protecionistas. O que está em jogo, na verdade, é que a pandemia acelerou o processo de convergência entre autoridades monetárias e as finanças globais em torno da urgência de se colocar preço em serviços ecossistêmicos, cujo uso não passa pelos mercados. Além disso, é fundamental, como ressalta o documento brasileiro, interromper os subsídios aos fósseis e zerar o desmatamento não só na Amazônia, mas também no Cerrado.
Colocar a luta contra a crise climática no centro da política econômica (como vêm fazendo os países mais importantes do mundo) orienta a inovação e a infraestrutura de que o mundo vai se dotar nas próximas décadas. É claro que são fortíssimos os interesses ligados ao que foi a economia do século 20 no mundo todo. É até possível que o Brasil receba investimentos estrangeiros completamente alheios às preocupações do documento dos ex-ministros e ex-presidentes do Banco Central.
Mas isso significaria que, em vez de ser reconhecido como potência ambiental, detentora da maior biodiversidade do planeta e com potencial de contribuir para resolver o maior desafio coletivo já enfrentado pela espécie humana, o Brasil se consolidaria no triste papel de vilão a que estamos sendo hoje relegados.
https://tab.uol.com.br/colunas/ricardo-abramovay/2020/07/15/para-que-o-brasil-saia-do-papel-de-vilao-global-um-documento-historico.htm