Ignacy Sachs, muito antes do ‘desenvolvimento sustentável’

Folha de S. Paulo Logo PNG Vector on line, 3/08/2023

Morto aos 96, criador do ecodesenvolvimento deixa obra que precisa ser mais conhecida

O traço mais importante da Conferência das Nações Unidas sobre o “ambiente humano”, realizada 51 anos atrás em Estocolmo, foi o confronto entre os países do então chamado “terceiro mundo” e as nações mais desenvolvidas do planeta. Ignacy Sachs, que acaba de nos deixar aos 96 anos de idade, acompanhou a conferência e, em artigo numa das mais prestigiosas revistas da época, Les Temps Modernes, ele já expunha traço fundamentais de um pensamento que se tornou, ao longo de cinco décadas, referência incontornável.

Polonês de nascimento, teve que deixar seu país na infância logo após a invasão nazista e, numa aventura impressionante narrada no seu lindo livro autobiográfico (“A Terceira Margem”, Cia. das Letras), foi para a França e de lá acabou vindo ao Brasil. Formou-se em economia e, para surpresa de seus amigos e colegas, em 1954, já casado com Viola Sachs (que se tornaria uma das mais importantes especialistas globais na obra de Herman Melville), voltou para a Polônia.

Polonês naturalizado francês, o economista Ignacy Sachs acompanha conferência na USP – Matuiti Mayezo/Folhapress – Matuiti Mayezo/Folhapress

As ciências sociais deste país produziram algumas das mais notáveis figuras intelectuais da segunda metade do século 20, como os economistas Oskar Lange e Michal Kalecki (de quem Sachs foi orientando de doutorado) e o historiador Witold Kula. Sachs trabalhou no sistema polonês de planejamento com esses economistas. Ele passou também três anos na embaixada polonesa na Índia e, ao longo de sua vida, sempre se empenhou em aproximar o Brasil e a intelectualidade brasileira deste país. Ao final dos anos 1960, Sachs teve que fugir da Polônia com a família por perseguição antissemita vinda do governo.

Na França, foi acolhido por ninguém menos que Fernand Braudel e tornou-se professor na École Pratique des Hautes Études. Também foi criador e fundador do Centro Internacional de Pesquisa sobre o meio ambiente e o desenvolvimento (Cired, na sigla em francês), em 1973, e alguns anos depois formou o Centro de Estudos do Brasil Contemporâneo, que recebeu intelectuais, políticos, dirigentes de movimentos sociais e empresários brasileiros em seminários semanais regulares. Sachs teve inegável influência intelectual e até política no Brasil em ao menos três temas.

Em primeiro lugar, desde Estocolmo, Sachs sempre defendeu o multilateralismo democrático e a importância das Nações Unidas para um enfrentamento dos grandes problemas globais. Essa defesa, na Conferência de 1972, se exprimia na importância da voz dos países do então chamado “terceiro mundo”.

Além disso, Sachs jamais aceitou a ideia de que a manutenção dos serviços ecossistêmicos dependesse da interrupção do crescimento econômico. Foi a inspiração para que criasse a expressão “ecodesenvolvimento”, que chegou a figurar em documentos da ONU antes da generalização do uso de “desenvolvimento sustentável”. Para ele, bem como para Amartya Sen, que ele conheceu de perto, desenvolvimento é uma noção ética, não um processo puramente econômico. Ampliar a oferta de bens e serviços é fundamental na luta contra a pobreza.

Mas essa oferta tem que ser planejada para que se apoie em técnicas regenerativas, não na destruição, no desperdício e na poluição —como era a regra tanto no mundo capitalista como nos países então socialistas. E o parâmetro básico para julgar esses padrões produtivos é sua capacidade de incorporar e melhorar as condições sociais dos que se encontram na base da pirâmide social.

O ecodesenvolvimento é uma das mais importantes contribuições intelectuais para as ciências sociais contemporâneas. Ignacy Sachs deixa uma obra que tem que ser mais conhecida e muita saudade entre seus amigos.

https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2023/08/ignacy-sachs-muito-antes-do-desenvolvimento-sustentavel.shtml

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