Movimento social e lei de ferro da oligarquia

“Lei de ferro da oligarquia” foi a expressão usada em 1911 pelo sociólogo Robert Michels para caracterizar o risco inerente a qualquer partido político de que os eleitos tomem o lugar dos eleitores e a estrutura administrativa da organização deixe de ser um meio para se tornar um fim autônomo

Artigo publicado na seção Opinião, Tendências e Debates, do jornal Folha de S. Paulo em 02 de fevereiro de 2006.

“Lei de ferro da oligarquia” foi a expressão usada em 1911 pelo sociólogo Robert Michels para caracterizar o risco inerente a qualquer partido político de que os eleitos tomem o lugar dos eleitores e a estrutura administrativa da organização deixe de ser um meio para se tornar um fim autônomo: “Quem diz organização, diz oligarquia”, afirma Michels em seu célebre estudo.

O historiador -tão conhecido do público brasileiro- Eric Hobsbawm mostrou em “Rebeldes Primitivos” que, na ausência de uma estrutura organizada e de lideranças claramente reconhecidas, o poder construtivo das revoltas é muito baixo. Hobsbawm filia-se à tradição marxista que vê na mobilização popular condição necessária, mas nem de longe suficiente para a mudança social. Sem organizações com objetivos políticos claros, as lutas sociais não conseguem ultrapassar um horizonte imediato e pouco promissor.

Porém -é o que diz Michels e a tradição inspirada no grande sociólogo Max Weber-, quando os movimentos sociais conquistam legitimidade e se organizam de forma claramente reconhecida, com uma estrutura política e administrativa profissional, perdem o encantamento em que nasceram, deixam-se devorar pela rotina e acabam reduzindo seu poder de contestação, tão importante para a construção da democracia e do desenvolvimento.

Em países cuja sociedade civil não é especialmente forte (é o caso não só do Brasil mas, ao que tudo indica, de toda a América Latina), o enquadramento dos movimentos sociais passa essencialmente por seu reconhecimento pelo Estado e pela capacidade dos diferentes governos de transferir a essas organizações recursos e oportunidades decisivas em sua reprodução administrativa.

Seu poder real de mobilização é menos importante que seu reconhecimento formal: são canais de mediação de recursos públicos a certos segmentos da população. Por aí constroem as bases políticas para a reprodução simultânea do Estado e das organizações em que se apóia essa transferência de recursos.
O acesso por parte do movimento sindical brasileiro ao Fundo de Amparo ao Trabalhador é um exemplo claro nesse sentido. Abre-se a possibilidade de que as organizações se afirmem não pela inovação social que trazem em suas ações e reivindicações, mas pela capacidade de pressionar o Estado para a obtenção de recursos que tentam dirigir tanto a seus representados como às próprias estruturas administrativas em que se baseiam.

O que se ganha com isso são políticas de interesse setorial e, em grande medida, corporativo. O que se perde é a capacidade dos movimentos sociais de introduzir temas, reivindicações e experiências inovadoras. Mais que isso: perde-se a possibilidade de que os movimentos sociais se organizem em torno de valores, e não apenas de interesses. Perde-se, assim, aquilo que corresponde ao mais importante da tradição dos movimentos sociais desde meados do século 19: a ambição de que as aspirações de um determinado segmento da sociedade exprimam um projeto emancipador de natureza universal.

Devolver aos movimentos sociais seu poder transformador é um dos desafios mais importantes para que a crise do PT não desemboque em um ceticismo generalizado, na descrença da capacidade da vontade social organizada de transformar o mundo.

Dois desafios básicos devem ser enfrentados para que os movimentos sociais consigam ao menos atenuar os efeitos da “lei de ferro da oligarquia”.

O primeiro se refere à reconstrução crítica das próprias utopias e dos valores em torno dos quais se organizam: o mais importante, aí, é o reconhecimento de que os grandes sistemas utópicos capazes de imprimir sentido unificador a um conjunto variado de lutas sociais e que marcaram a história social do século 20 estão inteiramente esgotados. Em seu lugar não surgiram e não surgirão alternativas globais com o mesmo poder agregador que foi o do socialismo.

Isso não significa tomar uma atitude cínica, estreita e localista e renunciar à reflexão sobre os grandes temas éticos de nosso tempo, que envolvem a natureza de nossos laços sociais e a maneira como a sociedade se relaciona com o mundo natural de que depende. Significa apenas que as utopias e os valores dos movimentos sociais não estão e nunca estarão prontos, mas devem ser permanentemente reconstruídos como resultado de suas lutas e do avanço do próprio conhecimento.
O segundo desafio -ainda mais importante- é o da transparência. É absolutamente decisivo que as contas das organizações sejam totalmente claras e disponíveis para consulta pública e que todos possam saber claramente de onde vêm e para onde vão os recursos em que se apóiam os movimentos sociais.

Mais que isso: é fundamental que as organizações se submetam a procedimentos de avaliação que permitam à sociedade julgar se cumpriram seus objetivos de maneira adequada ou se acabaram burocratizadas e presas na teia sedutora das relações corporativas com o próprio Estado.


Ricardo Abramovay, 52, é professor titular do Departamento de Economia da Faculdade de Economia e Administração da USP e do Programa de Ciência Ambiental da USP. É co-autor de, entre outros livros, “Laços Financeiros na Luta contra a Pobreza” (Annablume/Fapesp).

0 Shares:
0 Share
0 Tweet
5 1 vote
Article Rating
Subscribe
Notify of
guest
0 Comentários
Inline Feedbacks
View all comments
Talvez você goste