Uma nova economia geográfica do consumo

A nova economia geográfica, liderada por Paul Krugman, acertou em cheio ao mostrar, no início dos anos 1990, que os fatores produtivos não se dispersam em busca de mão-de-obra e matérias-primas baratas, mas, ao contrário, tendem a concentrar-se. Retornos crescentes, economias de aglomeração, redução de custos de transação, facilidade na troca de conhecimentos tácitos e na cooperação entre empresas explicam uma espécie de magnetismo das regiões vencedoras, que relega ao abandono tudo o que delas não faz parte.

Artigo publicado no jornal Valor Econômico em 19/02/2009 p. D 10.

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“La République et Ses Territoires – La Circulation Invisible des Richesses” – Laurent Davezies.
Editora Seuil, 109 págs., 10,50 euros.

A nova economia geográfica, liderada por Paul Krugman, acertou em cheio ao mostrar, no início dos anos 1990, que os fatores produtivos não se dispersam em busca de mão-de-obra e matérias-primas baratas, mas, ao contrário, tendem a concentrar-se. Retornos crescentes, economias de aglomeração, redução de custos de transação, facilidade na troca de conhecimentos tácitos e na cooperação entre empresas explicam uma espécie de magnetismo das regiões vencedoras, que relega ao abandono tudo o que delas não faz parte. Fora das metrópoles globais e de suas áreas de influência não há esperança. Ao mesmo tempo em que o mundo amplia seu horizonte material, restringe sua base territorial e elimina os locais incapazes de oferecer às empresas as externalidades com base nas quais podem expandir-se.

A outorga do Prêmio Nobel a Krugman, em grande parte pelos achados da nova geografia econômica, torna de imensa atualidade a crítica a ele dirigida por Laurent Davezies no livro “La République et Ses Territoires – La Circulation Invisible des Richesses” (algo como a República e seus territórios, a circulação invisível da riqueza). Para Davezies, a nova economia geográfica não leva suficientemente em consideração a crescente distância entre produção e uso da riqueza. É verdade que o PIB concentra-se geograficamente. Mas o mesmo não ocorre necessariamente com os gastos dos indivíduos e das famílias.

Nessa distância entre produção e renda encontra-se um dos fenômenos mais marcantes dos países desenvolvidos nos últimos anos e que explica a surpreendente vitalidade de alguns de seus territórios rurais. Os pólos dinâmicos da inovação tecnológica e do crescimento econômico são, cada vez menos, os locais de ampliação do bem-estar, de redução da pobreza e de aumento do emprego.

Não há qualquer tipo de tradicionalismo nostálgico no trabalho de Davezies. Para este professor do Instituto de Urbanismo de Paris, da Fundação Nacional de Ciências Políticas e da Universidade Paris-Val-de- Marne, não se trata de questionar o dinamismo das metrópoles globais. Ele mostra, no entanto, que há um divórcio geográfico entre as forças produtivas e as dinâmicas de desenvolvimento, entre economia residencial e economia produtiva. Os lugares de crescimento econômico não são necessariamente aqueles onde melhor se mora, onde a luta contra a pobreza é mais bem-sucedida nem mesmo os mais capazes de criar empregos. E isso não ocorre apenas na França, nem mesmo somente na Europa Ocidental.

Para Davezies, produção e renda dissociam-se por duas razões básicas. A primeira é que os indivíduos ocupam parte cada vez menor de suas vidas com a produção: cresce o tempo do estudo, do lazer, da formação contínua e reduz-se a idade da aposentadoria. A esta dissociação temporal, acrescenta-se uma separação espacial.

“Numa sociedade que passa tão pouco tempo produzindo e tanto tempo consumindo, a dissociação entre tempo de produção e tempo de consumo acaba por se traduzir por uma dissociação entre lugares de produção e lugares de consumo”: em 1976 a região metropolitana de Paris produzia 27% do PIB francês e seus domicílios dispunham de 25% da renda nacional. Em 1996, aumentou sua participação no PIB para 29% e caiu a renda de seus habitantes para 22% da renda domiciliar. Não é que os salários nas regiões metropolitanas tenham caído: mas caiu o número de assalariados e parte do que ganham foi gasto longe de onde trabalham.

Além disso, há uma fortíssima tendência de os aposentados instalarem-se fora das regiões dinâmicas e competitivas onde passaram sua vida produtiva. Uma vez que a aposentadoria se obtém cada vez mais cedo (na França em torno de 58 anos) e a expectativa de vida é de 20 anos adicionais, as regiões de acolhimento dos aposentados ganham uma força que não conheciam anteriormente. Não se trata de um dinamismo que se origina em competitividade internacionalmente consagrada e sim da oferta de bens e serviços locais exclusivos, capazes de garantir qualidade de vida.

Isso vai desde pequeno comércio, artesanato, restauração, preservação do patrimônio natural e cultural até um conjunto de serviços de proximidade (saúde, acompanhantes, lazer) cuja ampliação pode representar uma fonte importante de bem-estar.

A segunda razão para a separação entre produção e renda é a importância crucial dos recursos públicos e das transferências privadas. Os salários dos funcionários e as prestações sociais – incluindo as aposentadorias – garantem a maior parte da renda familiar na França: não há uma só região francesa em que os salários privados sejam mais importantes que as rendas derivadas de fundos públicos. Os recursos públicos são elementos decisivos que garantem convergência regional de renda no interior da grande maioria dos países europeus.

Mas não se trata de idiossincrasia francesa ou européia: Ann Markusen do Humphrey Institute of Public Affairs (“A Consumption Base Theory of Development: An Application to the Rural Cultural Economy” – Agricultural and Resource Economics Review 36/1, abril de 2007) mostra que, nos EUA, nada menos que 60% da renda das famílias das regiões não metropolitanas (e 49% das áreas metropolitanas) originam-se em fontes que não vêm dos salários de seus habitantes, mas de diferentes modalidades (públicas e privadas) de transferência de renda. Competitividade produtiva e atratividade residencial coincidem cada vez menos nos países desenvolvidos, o que amplia as chances dos territórios até então considerados perdedores e muda o horizonte a respeito das políticas públicas de descentralização.

É notável a convergência entre essa abordagem e duas dinâmicas brasileiras recentes. A primeira se refere à importância das transferências públicas e privadas de renda na formação da capacidade de consumo dos mais pobres e, mais que isso, das regiões mais pobres. A segunda está na acelerada migração de retorno do Sudeste em direção ao Nordeste, que marca a demografia brasileira desde o fim dos anos 1990.

A soma entre transferências públicas e transferências privadas de renda pode dar lugar a processos virtuosos de desenvolvimento não sobre a base da excelência competitiva e globalizada e sim para o atendimento de necessidades sociais localizadas. O grande desafio nesse caso não está em mimetizar o que se passa nas regiões dinâmicas e sim em valorizar a vida social local sobre a base do que ela tem de mais precioso: as relações de proximidade entre seus habitantes, seu patrimônio cultural e o uso sustentável de seus ecossistemas.

Ricardo Abramovay, professor titular do Departamento de Economia da FEA/USP, é coordenador de seu Núcleo de Economia Socioambiental (Nesa) e pesquisador do CNPq.

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