Hora de fé numa ciência que se faz popular

O desenvolvimento de uma ciência cidadã está entre as condições mais importantes para salvar a vida na Terra.

Artigo publicado no jornal Valor Econômico em 24/07/2008.

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“A Criação – Como Salvar a Vida na Terra” – Edward Wilson. Trad. de Isa Mara Lando. Companhia das Letras, 200 págs. R$ 35,00

O desenvolvimento de uma ciência cidadã está entre as condições mais importantes para salvar a vida na Terra. O homem do jaleco branco, o professor Girassol das célebres aventuras de Tintin e Milou, a clausura do sábio que conhece tanto melhor quanto menos é perturbado por temas mundanos, esta imagem do cientista vai sendo substituída pelo engajamento não só na luta contra a destruição, mas, sobretudo, no esforço de envolver os leigos com a prática científica.

As fronteiras convencionais entre descrição, compreensão e gestão encontram-se completamente borradas. O motivo é simples: os 6 mil especialistas (dos quais a metade se encontra nos Estados Unidos) voltados a estudar a diversidade biológica do planeta levariam, segundo cálculos otimistas, cerca de quatro séculos para concluir sua tarefa. Até lá, a extinção teria adquirido tal dimensão que parte decisiva do patrimônio natural desapareceria sem que sequer pudéssemos nos dar conta de sua existência. As conseqüências dessa ignorânciapara nossa própria vida e, sobretudo, a de nossos descendentes imediatos, seriam catastróficas. Os resultados recentes do envolvimento do público profano com o esforço dos biólogos em reduzir seu desconhecimento com relação às diferentes formas de vida na Terra não são apenas científicos, mas constituem uma das mais eficientes formas de educação ambiental que universitários, ativistas e governos vêm levando adiante.

Faz apenas vinte anos que Edward Wilson cunhou a expressão “biodiversidade”, hoje tão incorporada ao vocabulário cotidiano. Seu último livro, “A Criação – Como Salvar a Vida na Terra”, tem a forma de carta dirigida a um pastor, propondo uma parceria. É bem verdade que as visões que emergem, respectivamente, das catedrais e dos laboratórios, sobre a origem da vida, são opostas: “Deus fez a criação, é o que o senhor diz”, escreve Wilson. Já a ciência sustenta a idéia de que “a vida se fez a si mesma, por meio de mutações aleatórias e da seleção natural das moléculas codificadoras”. Wilson é delicadamente implacável com a noção de design inteligente. Mas isso não o impede de propor um terreno comum, fundamentado no amor pela Criação, que move o cientista e o homem de fé. Como cientista, Wilson não descarta a possibilidade de que pesquisas futuras venham a destruir diversos andares do edifício construído por ele e seus colegas na tentativa de compreender a vida. Mas o que se sabe até aqui exige mobilização imediata e massiva, para a qual ciência e religião podem cooperar.

O panorama atual é muito diferente daquele traçado pelo precursor da classificação das diferentes formas de vida, Lineu, que, na décima edição do “Systema Naturae”, em 1758, registrava 6 mil espécies vegetais e 4,4 mil espécies animais, um terço das quais vertebradas. O livro de Wilson coloca em destaque três conquistas intelectuais da biologia contemporânea, cujas conseqüências para a economia e a sociedade são cruciais.

A primeira se refere à magnitude da biodiversidade. Existe 1,7 milhão de espécies descritas, das quais 1,3 milhão são animais compostos por apenas 4% de vertebrados. O recenseamento atinge cerca de 10 mil novas espécies por ano e os especialistas estimam que o número de espécies deve variar entre 10 e 50 milhões, o que dá uma pálida idéia do tamanho da ignorância sobre o mundo natural. A esmagadora maioria desse manancial concentra-se nas áreas tropicais. Em 1982, uma equipe científica (devidamente autorizada) aplicou densa nuvem de um violento pesticida numa árvore da floresta amazônica (prática chamada de “fogging”) e constatou, pelos insetos, aranhas e centopéias mortos e coletados, que seu número – em apenas uma árvore – era da mesma ordem de grandeza de todos os insetos conhecidos na América do Norte. Mas a diversidade envolve não apenas esses milhões de animais e plantas desconhecidos – alcança também o nível genético. A saúde de uma espécie depende, em grande parte, de sua variabilidade interna: aí é que se encontram os potenciais para responder a mudanças no meio ambiente. Wilson se preocupa especialmente com a tendência das sociedades contemporâneas para concentrar seus recursos alimentares em poucas espécies e nos riscos de monotonia genética derivados das atuais modalidades de progresso técnico na agricultura.

A segunda descoberta recente da biologia envolve a complexidade, o caráter dinâmico e a natureza emergencial dos ecossistemas. Espécies e genes não podem ser tratados como listas estáticas: mantêm relações complexas, cujo estudo constitui uma das mais avançadas fronteiras da atividade científica contemporânea. Para usar a expressão de Bernard Chevassus-au-Louis, do Institut National de la Recherche Agronomique, da França, o ecossistema é uma entidade “emergente”, cujas propriedades não podem ser deduzidas daquelas que estão presentes nas espécies que o compõem. Não se refaz um ecossistema destruído, a partir de espécies e genes, como se obtém infinitamente a variação das cores com base em suas três unidades básicas. Esta constatação coloca o desafio básico da biologia da conservação, que não é o de um mundo natural intocável e imutável, mas, sim, o de preservar as propriedades evolutivas dos ecossistemas.

A terceira conquista intelectual colocada em relevo no livro de Wilson vai além da biologia e é de natureza prática. Desde a revolução neolítica, ele diz, “temos procurado nos elevar saindo da natureza, em vez de ascender rumo a ela”. O flerte com o sagrado contido na frase não deve escamotear um dos mais férteis programas de pesquisa e de intervenção prática levados adiante na agricultura, na construção civil, na produção de energia e em áreas econômicas as mais diversas: trata-se, em última análise, de romper com um dos mais caros mitos da civilização ocidental, que consiste em opor, como termos antagônicos, natureza e cultura, meio ambiente e sociedade. Aprender com a natureza não consiste em lidar com uma entidade mágica e intocável, à qual se opõe uma outra que lhe é estranha e exterior, a sociedade. O diálogo com o mundo religioso sugere que “salvar a vida na terra” vai muito além daquilo que o conhecimento científico oferece e supõe, antes de tudo, uma ética que permita à ciência incorporar o cidadão comum e à economia, aprender com a natureza.

Ricardo Abramovay é professor titular do Departamento de Economia da FEA/USP, coordenador de seu Núcleo de Economia Socioambiental (NESA) e pesquisador do CNPq

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