Eficiência e eqüidade podem, sim, andar juntas

Mercados não conhecem fraternidade e sua compreensão exige que sejam encarados como expressões de uma verdadeira mecânica dos interesses, da qual resulta a capacidade de satisfazer (de forma não planejada) as necessidades humanas: amigos, amigos, negócios à parte.

Artigo publicado no jornal Valor Econômico em 04/09/2008

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“Civil Economy – Efficiency, Equity, Public Happiness” – Luigino Bruni e Stefano Zamagni.
Peter Lang Publishing. 282 págs.

Mercados não conhecem fraternidade e sua compreensão exige que sejam encarados como expressões de uma verdadeira mecânica dos interesses, da qual resulta a capacidade de satisfazer (de forma não planejada) as necessidades humanas: amigos, amigos, negócios à parte. O pressuposto básico é que os indivíduos cumpram os contratos em que se envolvem e que suas relações se pautem exclusivamente pela tentativa de extrair – honestamente, é claro – o maior benefício possível dos vínculos econômicos que estabelecem com os outros. A prosperidade é o resultado não antecipado do incentivo para que indivíduos e empresas busquem as oportunidades que lhes parecem as mais adequadas. Sob esse ponto de vista, mais importante para que a economia e os mercados em que se apóiam funcionem é que sejam respeitados como esferas institucionais autônomas da vida social, livres da influência da religião,da política, das amizades, das clientelas, dos monopólios e, em última análise, da própria cultura.

Essa caricatura grotesca faz parte, até hoje, da formação básica dos economistas, no mundo todo. Felizmente, contra ela ergue-se – no interior mesmo do chamado “mainstream” do pensamento econômico – uma poderosa vertente à qual pertencem Luigino Bruni e Stefano Zamagni. Zamagni é autor de um respeitado manual de microeconomia, de uma história do pensamento econômico e de uma coletânea sobre a “economia do altruísmo”, na qual obteve a colaboração dos ganhadores do prêmio Nobel Gary Becker e Amartya Sen. Luigino Bruni, além de historiador do pensamento econômico, é membro dessa corrente contemporânea que questiona a idéia de que aumento de renda é necessariamente sinônimo de melhoria no bem-estar. Seu vínculo com a abordagem das capacitações (“capability approach”) de Amartya Sen e Marta Nussbaun é explícito.

O termo economia civil tem três significados básicos. O primeiro contesta o mito de que o nascimento da economia moderna é marcado exclusivamente pelas trocas impessoais, anônimas, desprovidas de vínculos comunitários e funcionando tanto melhor quanto menos contaminadas pela política, pela ética ou pela moral.

Bruni e Zamagni mostram a força do humanismo cívico do “Quattrocento” italiano e a profunda unidade existente entre economia e caridade nas mais notáveis organizações econômicas do início do Renascimento. Essa tradição aparece mais tarde na obra de Antonio Genovesi, iluminista da escola de Nápoles, segundo o qual a ausência de laços cívicos de confiança entre os cidadãos, de compromissos morais relativos à maneira de organizar a sociedade, é um obstáculo ao desenvolvimento do mercado. Reciprocidade e dádiva, por um lado, mercados e contratos, por outro, não são mundos hostis que a modernidade tratou se separar, mas estão permanentemente imersos uns nos outros.

A idéia de economia civil se insurge contra esse mito da idade moderna de que a esfera dos interesses econômicos pouco tem a ver com a do civismo, da qualidade dos vínculos sociais entre os cidadãos. É a razão pela qual, no subtítulo do livro e em todo seu conteúdo – e contrariamente a uma forte tradição da microeconomia contemporânea – eficiência e eqüidade são apresentadas conjuntamente e não como manifestações inevitáveis de dilemas (“trade-offs”) em torno dos quais as sociedades farão suas escolhas de Sofia.

Daí vem o segundo significado de economia civil. Civitas (e “polis”, do grego), não se reduz a atributos como o respeito à lei e o cumprimento dos contratos. Não se trata apenas da dimensão negativa da liberdade (ser livre de, ou seja, estar isento de dependências e constrangimentos), mas de sua forma positiva, “ser livre para”: liberdade para realizar o necessário à afirmação de sua própria pessoa. E é nesse sentido que a economia civil resgata a tradição aristotélica da boa sociedade, aquela que oferece às pessoas as liberdades para que possam desfrutar de uma vida construtiva e interessante.

A tradição utilitarista de Bentham reduziu o conceito aristotélico de felicidade (“eudaimonia”) a utilidade. “Esse movimento reducionista, afirmam Bruni e Zamagni, é a mais séria causa de empobrecimento da economia contemporânea.” Ao se definir a economia como ciência da utilidade, da raridade ou da alocação de recursos escassos entre fins alternativos, foram afastadas as categorias de pensamento necessárias a uma reflexão mais abrangente e generosa a respeito da interação social. Com isso, o sentido, a razão de ser, os fins morais últimos da relação entre os homens e o mundo material de que dependem deixaram de pertencer à esfera da ciência econômica.

O resultado está num dos maiores dilemas, não só da ciência econômica, mas da vida econômica contemporânea, ao qual o livro dedica um rico e didático capítulo. Estudos levados adiante nos últimos 30 anos revelam o que o economista e demógrafo americano Richard Easterlin chamou de “paradoxo da felicidade” na economia. Suas pesquisas indicam, basicamente, que não há relação entre riqueza objetiva e sentimento de felicidade. A metáfora da esteira rolante é útil para explicar o fenômeno: corre-se para não sair do lugar. O

que essas pesquisas mostram é que a felicidade está muito mais associada a relações humanas enriquecedoras do que à pura obtenção de mercadorias. É óbvio que não se trata de ignorar a satisfação das necessidades dos indivíduos, mas, sim, de contestar a idéia de que o permanente aumento de renda e consumo é a base para que ampliem sua realização pessoal.

O terceiro sentido da economia cívica evoca as organizações não governamentais, sem finalidades de lucro, e, num certo sentido, a própria economia solidária. Mas não se trata de considerar esse segmento isoladamente, como uma espécie de lado nobre da vida social, por oposição à economia privada. Esse dualismo maniqueísta bloqueia a percepção de que “a fisiologia, o funcionamento normal, a vocação do mercado é representar um momento da vida civil”. É claro que o mercado pode ser e, de fato, tem sido profundamente anticívico e destrutivo, com a concentração da renda e a devastação ambiental, por exemplo. Mas essas patologias serão tanto mais severas quanto mais o mercado estiver separado do humanismo cívico que, segundo Bruni e Zamagni, está na sua origem. Público e privado, mercado e Estado, contrato e reciprocidade, interesse e dádiva: as ciências sociais podem convergir para superar essas oposições e, por aí, como mostra a economia civil, contribuir para a construção de um mundo em que os valores éticos que mais prezamos não estejam em confronto com o funcionamento real da vida econômica.

Ricardo Abramovay é professor titular do Departamento de Economia da FEA/USP, coordenador de seu Núcleo de Economia Socioambiental e pesquisador do CNPQ

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A ciência descobre, a indústria aplica e o homem segue, diz o lema da exposição universal de Chicago, de 1933. A divisão do trabalho preconizada nessas palavras de ordem apóia-se sobre uma dupla e fundamental autonomia.