“Tudo por um triz”: a Amazônia e as eleições de outubro

Os três artigos que reuni aqui fazem parte do livro editado por João Cezar Castro Rocha, “Tudo por um Triz. Civilização ou Barbárie” (Kotter Editorial). João, professor titular da UERJ e um dos mais férteis conhecedores da extrema-direita no Brasil e no mundo reuniu 42 autores e a cada um deles dirigiu três perguntas. Para todos, em comum, a última pergunta é sobre a importância das eleições de outubro. As respostas deveriam ter o tamanho de uma coluna de jornal. Coloco aqui, então, as perguntas formuladas por João Cezar e minhas respostas. E aproveito para convidá-los para o lançamento do livro que será no dia 19/09 na Patuscada Livraria, rua Luís Murat, 40, em São Paulo.

  1. Em seu mais recente livro, Infraestrutura sustentável para o desenvolvimento da Amazônia, em lugar de apostar na imposição de projetos externos à região, a Amazônia é compreendida como potencialmente sendo sua própria infraestrutura. O que significará para o futuro da Amazônia a continuidade da política predatória do governo bolsonaro?

Liberalismo miliciano é o que impera hoje na Amazônia

O governo Bolsonaro vem cumprindo rigorosamente tudo o que anunciou durante a campanha eleitoral de 2019. A frase pode chocar aqueles que não perceberam a verdadeira natureza do propalado liberalismo que seria aplicado à gestão econômica. Mas tanto a sistemática apologia à tortura e ao autoritarismo, quanto o elogio explícito a grupos criminosos atuantes na oferta de bens e serviços de regiões periféricas do Rio de Janeiro mostravam em que consistia este liberalismo: sua essência está na ideia de que a vida social tem que ser comandada por poderes localizados, clientelistas, atuando à margem da lei e que disciplinam o uso dos diferentes territórios segundo seus interesses particulares e não a partir da obediência a orientações universalistas que deveriam envolver a regulação dos procedimentos econômicos e dos direitos humanos. O pressuposto básico da cultura miliciana é a aniquilação da esfera pública da vida social.

Faz parte deste arsenal não apenas a presença de grileiros e garimpeiros no Palácio do Planalto e o estímulo à exploração e exportação ilegais de madeira, mas igualmente a determinação de impedir o avanço de uma das mais importantes conquistas democráticas dos últimos trinta anos: o aumento da superfície das áreas protegidas da Amazônia, de 10% até 1988, a quase metade do território nos dias de hoje. Mas na visão não só de Jair Bolsonaro, mas igualmente de Hamilton Mourão e dos militares que lhes são próximos, a proteção destes territórios é, na verdade, uma ameaça à soberania brasileira.

Um dos traços mais notáveis do autoritarismo, como bem mostrou Teodor Adorno[1], é o permanente empenho do chefe em sugerir às massas que ele conhece segredos que todos ignoram e, portanto, é o único a poder agir para combater seus efeitos nefastos. O General Villas-Boas, numa versão quase circense desta característica, em entrevista ao apresentador Bial na rede Globo, em 2017, revelava[2] que o rei da Noruega fizera, em 2013, visita secreta a comunidades Ianomamis brasileiras. A ficção da ameaça, incutida até hoje na formação dos militares brasileiros e amplamente difundida por diferentes segmentos de seu comando, é que potências estrangeiras têm interesse na exploração das riquezas contidas no deserto humano que é o inferno verde florestal, para impedir a afirmação da grandeza brasileira, que poderia vir do uso destes recursos. O delírio é complementado com a ideia de que organizações não governamentais atuando junto aos povos da floresta são a ponta de lança destes interesses estrangeiros.

Esta é uma das razões básicas pelas quais a campanha eleitoral de Jair Bolsonaro prometeu acabar com o ativismo no Brasil e anunciou não só interromper a demarcação de novos territórios protegidos (indígenas, quilombolas ou reservas extrativistas) na Amazônia, mas promover a revisão de áreas demarcadas. Além disso, a campanha denunciava uma suposta indústria da multa, sinalizando que os poderes locais teriam (como, de fato, tiveram) mais ascendência sobre diferentes territórios do que o Estado.

Os resultados destas políticas e destas mensagens foram imediatos. Já no segundo semestre de 2018, o desmatamento na Amazônia se intensificava e, como mostra o levantamento do IPAM[3], a destruição florestal entre agosto de 2018 e julho de 2021, foi 56,6% superior ao desmatamento entre 2015 e 2018. A devastação vem aumentando a cada ano e em 2021 atingiu, no Brasil inteiro, segundo levantamento do MapBiomas, 16.557 quilômetros quadrados, 20% a mais que em 2020. Unidades de Conservação e áreas indígenas, tiveram o maior aumento proporcional no desmatamento, em virtude da sinalização governamental de que os invasores poderiam ser anistiados e recompensados com a legalização de suas atividades criminosas.

O que os especialistas vêm chamando de “cupinização” dos órgãos de monitoramento territorial e de proteção das populações que vivem na floresta se exprime na drástica redução na quantidade de multas e em simulacros de operações repressivas como as comandadas pelo General Mourão, que custaram R$ 500 milhões aos cofres públicos, sem qualquer resultado. Pior: ao mesmo tempo em que os militares em torno de Bolsonaro e Mourão alegavam defender o país contra interesses estrangeiros, o crime tomou conta da região e ramificou-se pelo Brasil e outros países amazônicos, como mostra relatório do Instituto Igarapé[4].

Em 1970, apenas 0,5% da Amazônia havia sido desmatada. Este montante atinge hoje cerca de 21%[5], proporção próxima ao patamar a partir do qual a regeneração florestal se torna quase impossível. É uma área devastada correspondente à soma dos territórios da Itália e da Espanha. Perder a floresta é perder a mais importante infraestrutura de que dispõe o Brasil e que responde pela regulação climática, pela oferta de água, pela maior biodiversidade do planeta e por uma cultura material e espiritual da qual o País deveria orgulhar-se e que só para fanáticos fundamentalistas representa um resquício do passado, a ser suprimido por meio do apoio ao crime organizado.

  1. Qual a contribuição possível da Amazônia para o desenvolvimento sustentável da economia e da sociedade no Brasil?

A inspiração que vem da Amazônia

Eduardo Gudynas, sociólogo uruguaio, batizou de “extrativismo progressista” o paradoxo de que governos de esquerda na América Latina, na primeira década do milênio, tenham se dedicado a combater as desigualdades, mas sobre a base de uma estrutura econômica concentrada em produtos primários, de baixo valor agregado e, muito frequentemente, apoiados em métodos socioambientalmente destrutivos. No caso da Amazônia brasileira são inegáveis as conquistas ligadas ao avanço na demarcação de territórios indígenas e de reservas extrativistas e a redução de 80% no desmatamento que, entre 2004 e 2012 fez do Brasil o país que individualmente, ofereceu a mais importante contribuição, neste período, à luta contra a crise climática.

Mas este avanço democrático não foi suficiente para romper com a lógica predominante na ocupação do território da Amazônia, batizada por Bertha Becker de economia da destruição da natureza. Que se trate de energia, de mineração ou da esmagadora maioria das atividades agropecuárias, a Amazônia tem sido predominantemente encarada pelo Brasil como uma espécie de almoxarifado onde o País busca produtos e serviços a baixo custo.

Interromper a economia da destruição e gerar as condições para que emerja a economia do conhecimento da natureza é a mais importante contribuição da Amazônia para o desenvolvimento sustentável do Brasil, por duas razões básicas.

A primeira é, de certa forma, conjuntural. Zerar o desmatamento na Amazônia (mas também no Cerrado) é a premissa básica para que, sob um governo democrático, o Brasil volte a ser internacionalmente respeitado. O fim da destruição trará dois benefícios diplomáticos e geopolíticos essenciais. O primeiro é que para atingir este objetivo é necessário que o Brasil coopere com países fronteiriços da Amazônia no combate à criminalidade. Este combate não pode ser feito sob as modalidades que predominaram durante a fracassada guerra às drogas. Ele vai exigir inteligência policial qualificada em cada país, colaboração entre diferentes órgãos nacionais de segurança e, portanto, vai resultar num equilíbrio de forças bem diferente daquele em que os Estados Unidos forneciam treinamento, financiamento e equipamentos com finalidades repressivas de baixa eficiência e que não impediram a expansão das formas atuais de criminalidade. Combater esta expansão por meio do fortalecimento da cooperação regional em torno da defesa da floresta e dos povos que nela habitam (como aliás previsto pelo Pacto de Letícia, assinado pelo Brasil em 2019) é essencial para o desenvolvimento sustentável em todo o Continente.

A este benefício geopolítico regional soma-se o interesse global na manutenção dos serviços ecossistêmicos oferecidos pela Amazônia. Encontrar modalidades inteligentes e construtivas que auxiliem na preservação destes serviços é uma contribuição fundamental para o desenvolvimento sustentável. A Amazônia tem que se tornar uma escola, para o mundo todo, de elaboração de modalidades criativas de pagamentos por serviços ambientais.

Mas a segunda razão básica pela qual a sociobiodiversidade da floresta e de seus rios contribui para o desenvolvimento sustentável do Brasil refere-se a seus padrões de crescimento econômico. Ao contrário de países asiáticos como China, Taiwan e mesmo o Vietnã, a América Latina, nos últimos quarenta anos, foi incapaz de diversificar suas estruturas produtivas perdendo competitividade e oportunidades em todos os segmentos, salvo nas atividades agropecuárias e no extrativismo. É verdade que, no caso do Brasil e da Argentina a agricultura de grãos e carnes teve crescimento muito expressivo, com base, em grande parte, em pesquisas científicas de qualidade, das quais a EMBRAPA é um exemplo importante.

Mas os padrões produtivos deste crescimento agropecuários estão hoje fortemente em questão. A agropecuária contemporânea é hoje o mais importante vetor de erosão da biodiversidade e um dos principais componentes das emissões de gases de efeito estufa.

Neste contexto, a economia do conhecimento da natureza oferece um caminho promissor para que o Brasil esteja na vanguarda da inovação científica e tecnológica no que se refere não só à proteção, mas, igualmente, a diferentes modalidades de uso sustentável das riquezas vindas da sociobiodiversidade. Alimentação humana diversificada, alimentação animal, fármacos, cosméticos, materiais de construção, plásticos, formas alternativas de fertilização e combate a pragas agrícolas, são funções para as quais a contribuição dos diferentes biomas brasileiros, a começar pela Amazônia, é ignorada e vem sendo eliminada antes mesmo de ser conhecida.

A convergência na inspiração socioambiental dos programas governamentais do Chile e da Colômbia abre caminho para que a economia do conhecimento da natureza impeça que o empenho da esquerda latino-americana na luta contra as desigualdades continue se apoiando na reprimarização de suas economias. A valorização, o conhecimento e o uso sustentável da sociobiodiversidade é a mais importante contribuição que a Amazônia pode dar ao desenvolvimento brasileiro.

  1. Como analisa a importância das eleições em outubro de 2022 para o futuro do Brasil?

Desigualdades e reprimarização econômica: faces da mesma moeda

A carta dirigida pelas Federações da Agricultura, do Comércio e da Indústria do Pará ao presidente da República, dois meses antes do primeiro turno das eleições, pedindo formalmente que o Brasil retire sua assinatura da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho[6] é apenas uma entre muitas expressões de que derrotar o fanatismo fundamentalista é condição necessária, mas não suficiente para a emergência de uma vida cívica construtiva no País. Na mesma semana em que segmentos expressivos das elites econômicas paraenses não se envergonhavam em se manifestar contra a proteção das populações indígenas (ameaçadas como nunca por um vasto conjunto de atividades criminosas), o Washington Post publicava uma reportagem[7] mostrando o envolvimento do prefeito de São Félix do Xingu (o município campeão nacional na emissão de gases de efeito estufa, apesar de contar com população de apenas 132 mil pessoas das quais a maior parte é pobre) em grilagem de terras, corrupção e assassinatos.

São dois exemplos que mostram as profundas raízes político-culturais da extrema-direita e a concepção, a visão de mundo a partir da qual ela preconiza o uso dos recursos à disposição dos atores econômicos. Mas estas raízes são brasileiras e não puramente amazônicas. Elas refletem dois traços estruturais interligados e cujo enfrentamento é o mais importante desafio da reconstrução democrática do Brasil.

O primeiro é que somos uma sociedade que, historicamente, como fruto de sua herança escravista, separou trabalho e conhecimento e que tem sido incapaz (mesmo com os inegáveis avanços na redução da pobreza, durante os governos progressistas) de fazer da educação, da qualificação profissional e da elevação da produtividade do trabalho o vetor decisivo de seu crescimento. Na OCDE, 42% dos jovens recebem formação profissional qualificada: no Brasil este total é de 5% e na Amazônia de 2%. Na Amazônia, com 42% dos jovens de 18 a 24 anos fora do mercado de trabalho, esta depreciação do trabalho é ainda mais grave que no restante do País: o bônus demográfico do qual dispõe a região (e que no Brasil foi perdido) está, igualmente, sendo desperdiçado, como mostram as informações do Projeto Amazônia 2030.

Mas a Amazônia é a expressão exagerada de um traço que não lhe é exclusivo. A depreciação do trabalho (correlativa à generalização do desrespeito aos direitos humanos) faz com as capacidades de milhões de pessoas, sobretudo os mais jovens, sejam sistematicamente subaproveitadas, o que cria um círculo vicioso de pobreza que vai exigir, do governo de reconstrução democrática, atuação prioritária. Isso passa, evidentemente, por políticas de transferência de renda e de relações de trabalho (com incremento à formalização e estímulo à organização sindical), mas, igualmente, por medidas que aprofundem e generalizem o que teve início com as cotas universitárias. A principal lição a ser tirada das inegáveis conquistas obtidas nas gestões dos governos de esquerda do início do milênio no Brasil, é que o crescimento econômico é um fator importante para o alívio da pobreza, mas não tem o condão, nem de longe, de enfrentar as desigualdades de destino que, até hoje, fecham o horizonte de uma vida digna a jovens de regiões periféricas, sobretudo às jovens negras e aos jovens negros.

Ao mesmo tempo, a ocupação predatória da Amazônia exprime a força de um segmento econômico específico (a agropecuária) que, na economia, na política, na cultura e até na música popular[8] procura se legitimar socialmente como detentor exclusivo da capacidade de gerar riqueza. Ora, como mostra um importante estudo do Banco Mundial[9], “apoiar-se em commodities primárias será insuficiente para impulsionar o crescimento futuro”. É verdade que as exportações agropecuárias dos Estados Unidos são o dobro da brasileira. Mas lá elas contribuem com 7% de suas vendas externas contra uma participação de 35% nas exportações brasileiras. O crescimento econômico do Brasil, exige que se aumente a produtividade além dos setores primários, ou seja, nas regiões urbanas, nas atividades industriais e nos serviços.

E estes dois traços estruturais (desigualdades e reprimarização) juntam-se no paradoxo de uma agricultura que, por um lado, se apoia em ciência e tecnologia (produto, em grande parte do trabalho da EMBRAPA), mas que segue ocupando novas áreas, como se o crescimento do país como um todo fosse dependente de sua incessante expansão territorial.

Não é casual, então, que, como denuncia um importante dirigente do setor agropecuário[10], parte tão importante do chamado “agro” não tenha assinado a carta em que 500 mil brasileiros (e muitos representantes do mundo financeiro e industrial) se comprometem com o respeito ao resultado das urnas. Enfrentar as desigualdades, fazer do aumento da produtividade do trabalho a mola propulsora do crescimento econômico e evitar que continue a reprimarização economia são faces da mesma moeda, a moeda que junta inovação e democracia.

[1] https://aterraeredonda.com.br/lideranca-democratica-e-manipulacao-de-massas/

[2] https://bncamazonas.com.br/ta_na_midia/rei-noruega-ianomamis-militares/

[3] https://ipam.org.br/desmatamento-na-amazonia-cresceu-566-sob-governo-bolsonaro/

[4] https://igarape.org.br/wp-content/uploads/2022/07/2022-07-AE-territorios-e-caminho-do-crime-ambiental-amazonia-brasileira.pdf

[5] https://www.americasquarterly.org/article/four-strategies-to-build-a-future-for-the-amazon/

[6] https://deolhonosruralistas.com.br/2022/07/16/empresarios-da-amazonia-pedem-que-brasil-abandone-convencao-que-protege-povos-indigenas/

[7] https://www.washingtonpost.com/world/interactive/2022/brazil-amazon-deforestation-politicians/

[8] https://www.instagram.com/tv/CfUsRgzjOYI/?igshid=YmMyMTA2M2Y=

[9] World Bank (2021) Na Economic Memorandum for Brazil’s Amazônia. A Balancing Act. Documento ainda sob embargo.

[10] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2022/07/agro-se-engana-ao-nao-assinar-carta-pela-democracia-diz-ex-presidente-da-sociedade-rural.shtml

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