Poluição química e alimentos ultraprocessados ainda não sensibilizaram setor financeiro
30/04/2024 p. A16
A litigância climática é uma solução de fronteira que hoje mobiliza milhares de pessoas e organizações no mundo todo contra o avanço da maior ameaça à própria vida. Em 2017 eram 884 casos. Em 2020 aumentam para 1550, chegando ao final de 2022 a 2180 processos, em 65 jurisdições. Com a publicação do “Global Climate Litigation Report” as Nações Unidas subsidiam juízes, advogados, ONGs e comunidades as mais variadas na luta contra a crise climática. No Brasil, a Plataforma JUMA da PUC/RJ contabilizava 80 casos ao final do ano passado.
São cada vez mais claros os sinais de que os custos ocultos da economia (ou seja, a destruição de recursos e serviços ecossistêmicos dos quais a oferta de bens e serviços depende e pelos quais as empresas nada pagam) atingiram um patamar que cedo ou tarde vai-se exprimir nos balanços contábeis e nas avaliações de risco a partir das quais o sistema financeiro opera. É verdade também que esta expressão, hoje, não poderia ser mais imperfeita.
O recém-lançado “Insurance Disaster 2024”, da prestigiosa organização britânica Share Action, por exemplo, mostra que as maiores empresas globais de seguro (detentoras de ativos representando nada menos que 7% do PIB do mundo) seguem oferecendo apólices e fazendo investimentos nas piores modalidades de exploração fóssil, em atividades que destroem a biodiversidade e com pouca ou nenhuma preocupação com o bem-estar social.
Mas por mais tímidos que sejam ainda os impactos das diferentes formas de litigância socioambiental nas contas empresariais e em sua expressão na avaliação dos riscos financeiros, este é um movimento crescente que merece ser acompanhado de perto. E esta litigância não se limita ao clima.
A agência de proteção ambiental norte-americana (EPA) acaba de divulgar uma legislação que proíbe a presença de seis substâncias perfluoroalquiladas (os famosos PFAS, também conhecidos como “toxic forever chemicals”) na água que abastece nada menos que cem milhões de habitantes. São elaborações químicas que não se encontram na natureza e que estão em embalagens de fast-food, utensílios de cozinha anti-aderentes, maquiagens à prova d’água, roupas impermeáveis, móveis e cerca de nove mil produtos de uso cotidiano. Como estas elaborações químicas estão no ambiente desde 1940, existem estudos robustos mostrando-as como vetores de câncer, doenças renais, deformações neo-natais, problemas imunológicos, alterações hormonais, entre outros.
Sobem a quase US$ 15 bilhões o que algumas empresas químicas foram obrigadas a pagar por esta poluição. Segundo especialistas ouvidos pelo The Guardian, só a descontaminação da água nos Estados Unidos vai custar cerca de US$ 400 bilhões. Até aqui, não está claro sobre quem vai recair esta conta, mas várias municipalidades começam a voltar-se contra a indústria química para que esta responda pelo reparo aos danos que seus produtos vêm causando.
Mas é importante mencionar também casos em que a destruição socioambiental já se exprime nas contas empresariais. No “Capital Market Day” de 2024 da empresa química Bayer a positiva presença da “agricultura regenerativa” na pauta não foi suficiente para ofuscar a constatação da Planet Tracker (https://shorturl.at/dhEJX) de que a litigância sobre os químicos sintéticos ocupava o topo da agenda. Em 2023, os pagamentos da empresa por processos ligados a seus poluentes químicos subiram a 13 bilhões de euros, mais do que os dividendos distribuídos aos acionistas, que foram cortados em 95%, relativamente ao ano anterior. As provisões para enfrentar novos processos sobem a 6,6 bilhões de euros. Planet Tracker considera que a situação da Bayer deveria servir de alerta a empresas cujos produtos dependem de químicos prejudiciais ao meio ambiente e à saúde humana. Daí segue uma pergunta crucial: os investidores estão “precificando” de forma adequada os riscos destas empresas?
E esta pergunta conduz a outro caso recente e fundamental. Cinco investidores institucionais da Nestlé, a maior empresa global de alimentos, detentores de uma carteira de US$ 1,68 trilhão, constatam que a empresa é altamente dependente de produtos não saudáveis (basicamente de ultraprocessados) que correspondem a algo entre 58% e 75% de suas vendas. Esta informação é especialmente importante para nós, pois a América Latina lidera as vendas globais da Nestlé. O relatório da Share Action, que assessora os acionistas em sua proposição, constata que o custo das doenças decorrentes da pandemia global de obesidade está estimado em US$ 4,32 trilhões anuais até 2035. Continuar oferecendo produtos que contribuem para esta pandemia não só é prejudicial à saúde, mas representa um risco que, até aqui, não tem alcançado os radares dos investidores financeiros. Daí então a moção aos acionistas (https://shorturl.at/bghsz) para que se reduza a proporção de ultraprocessados e se aumente imediatamente a parte de produtos saudáveis naquilo que a maior empresa de alimentos do mundo oferece aos consumidores.
As propostas de natureza socioambiental nas assembleias de acionistas das grandes corporações chegaram a seu nível recorde em 2023 e devem continuar crescendo em 2024, segundo o Institutional Shareholder Service norte-americano. Mas o apoio a este tipo de proposta caiu pelo segundo ano consecutivo em 2023.
Os reguladores dos mercados financeiros norte-americanos (a Securities and Exchange Commision, SEC) estão cada vez mais rigorosos para que as empresas exponham a seus acionistas e investidores os riscos climáticos de suas atividades. Mas, até aqui ao menos, não há indícios de que a poluição química e os produtos alimentares ultraprocessados, que originam a pandemia de obesidade e as doenças que mais matam no mundo, tenham sensibilizado de fato as antenas dos mercados financeiros. Para isso, vai ser necessário fortalecer e diversificar os processos de litigância socioambiental, bem como a regulação pública para que a revelação e o pagamento dos custos ocultos do sistema econômico contribuam para a transformação ecológica da produção social.
https://valor.globo.com/opiniao/coluna/mercados-avaliam-bem-os-riscos-socioambientais.ghtml