Joe Biden adere ao Green New Deal. Agora só falta o Brasil

UOL Tab passa a ter conteúdos diários – Meio & Mensagem2/07/2020

A hoje provável vitória de Joe Biden nas eleições presidenciais norte-americanas vai mostrar que o fanatismo de extrema-direita, a demagogia nacionalista e o prestígio derivado do culto ao racismo e à xenofobia são incapazes de inspirar boas práticas governamentais para enfrentar os mais complexos problemas do mundo contemporâneo.

É claro que as democracias dependem do voto popular e as eleições são eventos altamente emocionais, que mobilizam muito mais que o raciocínio lógico das pessoas. A tentação de vencer caricaturando as posições dos adversários e explorando os preconceitos das pessoas (muito mais que sua capacidade crítica e sua inteligência) é largamente aplicada.

Mas a inépcia de quem lidou com a pandemia a partir do culto ao grotesco e ao vulgar acaba por vir à tona. Os governantes (e, sobretudo, as governantes, como mostram Alemanha, Nova Zelândia, Dinamarca, e Islândia) que enfrentaram a pandemia com mensagens de solidariedade e união nacional, apoiadas nos resultados do debate científico aberto, tiveram muito melhor desempenho nas pesquisas de opinião que aqueles que — como Trump e Bolsonaro — julgaram que persistir nos métodos pelos quais venceram as eleições era o caminho que os fortaleceria.

Tão importante quanto as consequências políticas de uma vitória de Joe Biden é o anúncio de sua adesão ao Green New Deal. Trata-se de um grande acordo social que pretende modificar a maneira como as sociedades contemporâneas criam, distribuem e consomem a riqueza.

O importante na ideia de Green New Deal é que a vida econômica passa a ter o objetivo não só de oferecer bens, serviços, empregos, inovação e arrecadação de impostos, mas também de neutralizar as emissões de gases efeito estufa, responsáveis pelo aquecimento global, reduzir a erosão da biodiversidade, combater a acidificação dos oceanos, a destruição das geleiras e proteger cada vez mais o capital natural que fornece os serviços ecossistêmicos dos quais todos dependemos. E por que isso é importante?

Nas últimas quatro décadas houve um declínio de 60% na população de mamíferos, pássaros, peixes, répteis e anfíbios, sobretudo nos trópicos. O número de espécies de abelhas selvagens caiu de 6.500, nos anos 1950, para 3.400 na segunda década do milênio. O desmatamento da Amazônia brasileira subiu de 1% no início dos anos 1970 a quase 20% hoje, como mostra o recém-lançado relatório Dasgupta sobre a Economia da Biodiversidade, aproximando a maior floresta tropical do planeta do momento crítico em que ela pode deixar de produzir a chuva da qual dependem nossas hidrelétricas e nossa agricultura.

O que está em jogo não é o apego tradicionalista a uma natureza supostamente intocada. O problema, como mostra o relatório Dasgupta (p. 17) é que a “economia global ‘desacumulou’ capital natural à medida que acumulava capital produtivo”. A ambição do Green New Deal é interromper e reverter essas ameaçadoras perdas.

Na verdade, a ideia não é nova. O Departamento de Negócios Econômicos e Sociais das Nações Unidas lançou, em dezembro de 2009, um documento para um “green new deal global” para o clima, a energia e o desenvolvimento. Mas agora a situação é diferente e mais promissora, apesar do desalento trazido pela pandemia, por duas razões.

A primeira é que já estão disponíveis as tecnologias necessárias à promover a redução da presença do carvão (o mais sujo dos combustíveis fósseis) na produção de energia. Só nos Estados Unidos, em 2020, serão instaladas, em energia eólica e solar, o correspondente a mais de duas Itaipus (32GW). Ao mesmo tempo, 85% das plantas industriais que vão cessar suas operações são movidas a carvão. E isso sob um presidente que apoia o lobby do carvão e retirou incentivos às renováveis renováveis modernas. Na China (apesar de continuar o avanço das usinas a carvão) e na Índia, a expansão das renováveis se faz com base em empresas locais que estão na vanguarda da inovação tecnológica global nesta área.

Estes avanços não se referem apenas à energia. Na verdade, as cinco dimensões mais importantes na oferta de bens e serviços do mundo contemporâneo (energia, alimentos, informação, mobilidade e materiais) passam por transformações tecnológicas que abrem caminho para a descarbonização da economia global, como mostra o recém-lançado relatório da consultoria global RethinkX. Meu artigo recente nesta coluna explora o tema no que se refere à alimentação.

E é o que dá base ao segundo elemento que torna promissor o horizonte do Green New Deal. Se, no caso de Joe Biden, as políticas voltadas ao Green New Deal são ainda um pouco vagas e não desprovidas de ambiguidades, na União Europeia elas vão se convertendo em chamado oficial, chancelado pela Alemanha, pela França e pela Comissão Europeia. Na Grã-Bretanha, os dois polos do xadrez político aderiram ao Green New Deal. No Canadá são mais de 70 grupos da sociedade civil que, desde 2019 estão trabalhando nesta direção. Na França foram sorteadas 150 pessoas que compõem a Convenção Cidadão para o Clima. Trata-se de um grupo com poder de convocar especialistas e administradores com o objetivo de apresentar ao país um plano para reduzir as emissões em 40% até 2030 (com base no que era emitido em 1990).

A sinalização do Green New Deal é que o desenvolvimento científico e tecnológico contemporâneo será cada vez mais voltado a finalidades éticas cuja essência atual está na mudança nos padrões de relação entre sociedade e natureza. Compreender o mundo natural, aprender com ele, não para submetê-lo a nossos caprichos e sim para regenerar sua capacidade de nos oferecer as bases das quais depende a própria vida, essa é a mais nobre missão da ciência e da tecnologia no século 21.

Mas isso só é possível em países cujos governantes valorizam a ciência, o diálogo e o respeito pela natureza e pelos que dela mais cuidam. No Brasil, o primeiro passo nessa direção é a valorização das organizações científicas e a imediata interrupção das agressões a que a floresta e os povos que nela habitam estão sendo atualmente submetidos, como bem mostrou o artigo recente do Ministro Luiz Roberto Barroso em coautoria com a professora Patrícia Perrone Campos Melo.

Estas são premissas básicas para que a maior floresta tropical do mundo contribua a melhorar a vida dos brasileiros e auxilie o mundo a regenerar os serviços ecossistêmicos dos quais depende. É o caminho mais promissor para que a comunidade internacional volte a se relacionar com o Brasil como aliado no enfrentamento de nosso mais importante desafio global e não como ameaça na luta contra as mudanças climáticas.

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