Ultraprocessados na mira de Davos

notification icon 22/12/2023 p. A15

Não se trata mais de produzir, de forma segura, barata e abundante, calorias e proteínas para uma população crescente. Embora esta preocupação do sistema agroalimentar global, desde a Segunda Guerra Mundial, tenha trazido resultados decisivos no aumento da oferta e no combate à fome, a pauta do século 21 é outra. Ela tem por eixo uma “nova fronteira da nutrição”, capaz de reconhecer que a presença crescente de produtos ultraprocessados nos regimes alimentares contemporâneos é o principal vetor das doenças não transmissíveis, que são as que mais matam no mundo.

Se até recentemente esta mensagem vinha da Organização Mundial da Saúde, da esmagadora maioria dos cientistas da nutrição e de inúmeros grupos de defesa do consumidor, agora é o mais importante think tank do meio empresarial global que lança o alerta. O Fórum Econômico Mundial (em colaboração com a consultoria global Accenture) acaba de lançar um trabalho (https://shorter.me/hIMAv ) mostrando que é insuficiente o compromisso de tantos gigantes do setor agropecuário com promessas de práticas regenerativas, se não houver transformação profunda na qualidade do que se oferece aos consumidores.

É verdade, diz o trabalho, que a expectativa de vida, no mundo, aumentou de 61 para 73 anos, nos últimos trinta anos. Mas a incidência de doenças não transmissíveis como as cardíacas, o diabetes tipo 2 e vários tipos de câncer dobrou neste período, sobretudo nos países de renda baixa e média, e o consumo em larga escala de ultraprocessados está no centro desta explosão.

Este é um fenômeno global, com consequências drásticas sobre as desigualdades. Nada menos que 62% da população que sofre de obesidade encontra-se nos países em desenvolvimento. 42% da população global não tem como adquirir uma dieta saudável. Nos países de mais baixa renda esta proporção chega a 90%. Com isso, as doenças não transmissíveis atingem mais aqueles que têm menos chances de receberem tratamentos em saúde adequados.

Mais de dois bilhões de pessoas padecem de um fenômeno conhecido como fome oculta, em que a obesidade convive com carências nutricionais (particularmente em ferro, zinco, iodo e vitamina A). E o estudo do Fórum Econômico Mundial mostra também evidências cada vez mais robustas ligando o consumo de ultraprocessados à depressão.

Os custos socioambientais do funcionamento do sistema agroalimentar (tanto nos serviços ecossistêmicos que ele destrói, quanto nas agressões à saúde humana) correspondem ao dobro do valor daquilo que este sistema oferece à vida social, pelos cálculos do estudo. O valor do consumo alimentar global é estimado em US$ 9 trilhões anuais, mas seus custos ocultos sobem a US$ 19 trilhões, dos quais US$ 11 trilhões referem-se à saúde humana.

A revelação dos custos do sistema agroalimentar global para a saúde humana tornou-se possível graças a uma verdadeira revolução pela qual passaram as ciências da nutrição no século 21 e da qual o Núcleo de Pesquisa em Nutrição e Saúde (NUPENS) da Faculdade de Saúde Pública da USP (fundado por Carlos Monteiro, um dos consultores internacionais do trabalho do Fórum Econômico Mundial) é protagonista decisivo. Até então, a preocupação central era com os nutrientes, suas carências e as doenças que daí poderiam decorrer.

A mudança consiste em examinar os alimentos com base no seu grau de transformação industrial. O perigo não está na industrialização, mas no consumo crescente de produtos que não preenchem a diversidade da qual o organismo humano necessita. Um dos trechos mais interessantes do relatório é o que mostra que a quantidade de micro-organismos ativos no solo é mais ou menos a mesma que a contida em nossos intestinos. Só que com o avanço dos ultraprocessados esta diversidade, no organismo humano, cai drasticamente e não adianta tentar recuperá-la artificialmente, por meio de aditivos.

Daí a recomendação fundamental do trabalho, que enfatiza não apenas diversidade, e consumo de produtos frescos, mas igualmente a valorização das culturas materializadas em práticas culinárias locais. O que o Fórum Econômico Mundial está questionando é um sistema em que a alimentação humana perde os vínculos com os territórios e depende de produtos padronizados, monótonos, anônimos, compostos de elementos que não se encontram na cozinha tradicional e que empobrecem a diversidade não apenas das paisagens agropecuárias, mas do próprio organismo (e por aí da saúde) das pessoas.

É difícil encontrar contestação tão ampla da essência do atual sistema agroalimentar, ainda mais vinda de um think tank empresarial. O texto chega a propor que os produtores sejam pagos com base na diversidade e no poder nutritivo de suas colheitas e que recebam apoio para oferecer produtos a suas comunidades baseados em práticas sustentáveis. Isso é o contrário do que ocorre hoje: nos EUA, por exemplo, 94% dos subsídios vão para apenas seis produtos. Num contexto em que os eventos climáticos extremos impõem perdas crescentes a esta concentração produtiva, os gastos globais com seguro agrícola, em 2030, devem chegar a US$ 1,7 trilhão.

Já a indústria, propõe o estudo, deveria eliminar todos os ingredientes danosos e manufaturar produtos que sejam tão saudáveis quanto os não processados. O caminho é “criar produtos completamente novos, reformular a oferta existente e melhorar a estabilidade de produtos não processados”. Esta é uma recomendação especialmente inspiradora para produtos da sociobiodiversidade florestal que, muitas vezes, só podem atingir mercados se passarem por processos de microprocessamento que ampliem sua durabilidade.

A monotonia do sistema agroalimentar global está com os dias contados. O Brasil ocupa o epicentro desta monotonia. Trata-se de saber agora se vamos continuar com os olhos no século 20 ou se as lideranças empresariais, governamentais e associativas terão maturidade para contribuir à emergência de um sistema agroalimentar saudável, justo e regenerativo. E isso passa por reduzir drasticamente a presença dos ultraprocessados e valorizar a riqueza da diversidade das tradições culinárias de nossos diferentes territórios.

https://valor.globo.com/opiniao/coluna/ultraprocessados-na-mira-de-davos.ghtml

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