Alimentação e desenvolvimento

DESDE QUE Josué de Castro publicou a “Geografia da Fome”, já se sabe que a humanidade é capaz de produzir o necessário para banir do planeta o problema da subalimentação.

Artigo publicado no jornal Folha de S. Paula, na seção Tendências e Debates, em 07 de junho de 2008

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Uma maior abertura comercial ajuda no combate à fome?

NÃO

Alimentação e desenvolvimento

RICARDO ABRAMOVAY

DESDE QUE Josué de Castro publicou a “Geografia da Fome”, já se sabe que a humanidade é capaz de produzir o necessário para banir do planeta o problema da subalimentação. Os progressos nos últimos 50 anos foram imensos: o consumo calórico nos países em desenvolvimento aumentou 30%. Das sete nações com mais de 100 milhões de habitantes (China, Indonésia, Brasil, Índia, Paquistão, Nigéria e Bangladesh), só Bangladesh mantém nível de consumo per capita muito baixo.

Em 1990, a ingestão calórica aquém das necessidades individuais básicas atingia 32% dos habitantes da Terra. Hoje, os 850 milhões de pessoas que não conseguem preencher as necessidades alimentares correspondem a menos de 15% da população mundial.

Apesar do avanço, dificilmente o horizonte estabelecido pela ONU de reduzir esse contingente pela metade até 2015 será alcançado. Por quê? A resposta que domina a cena internacional é que a fome no mundo persiste por causa do protecionismo dos países ricos. Que essa resposta seja conveniente aos interesses do Brasil é compreensível. Mas isso não a torna mais consistente.

A fome, hoje, concentra-se em países da África subsaariana (e, em menor proporção, na Índia e no Paquistão). A esmagadora maioria dos que não conseguem preencher suas necessidades básicas vivem em regiões rurais, e a escassa renda que obtêm deriva da agricultura.

O debate internacional está marcado por uma polaridade fundamental. Por um lado, há os que preconizam que em regiões rurais de países pobres, ecologicamente frágeis, as atividades agrícolas se reduzam ao mínimo e que suas populações sejam

São Paulo, sábado, 07 de junho de 2008alimentadas principalmente com importações vindas de áreas que já se provaram mais eficientes. Os que contestam essa associação direta entre liberalização comercial e combate à fome se apóiam em três argumentos importantes.

O primeiro deles pergunta com que recursos os mais pobres pagariam os alimentos importados. Importar exatamente aqueles bens que -na qualidade de habitantes do mundo rural- essas pessoas poderiam e deveriam produzir significa perpetuar sua dependência da ajuda internacional.

Mas será que elevar a produção em regiões ecologicamente frágeis é agronomicamente viável? Uma das mais destacadas personalidades da ciência agronômica mundial, o indiano M. S. Swaminathan, oferece o segundo argumento e responde com um entusiasmado “sim” à pergunta.

É necessário, porém, superar as técnicas que marcaram a conhecida Revolução Verde e cuja essência está em moldar o ambiente natural segundo as exigências das sementes que associam alto potencial produtivo ao uso de fertilizantes químicos e agrotóxicos em larga escala.

O desafio é construir o que Swaminathan chama de “evergreen revolution” (revolução sempre verde), com tecnologias que se adaptem ao meio natural e que sejam capazes de fazer da preservação da biodiversidade uma das bases decisivas da própria expansão produtiva.

O aumento dos preços do petróleo, o encarecimento dos fertilizantes, as exigências dos consumidores e a pressão das organizações da sociedade civil explicam mudanças notáveis na produção agrícola contemporânea em direção a uma relação menos agressiva com os recursos naturais.

E aqui vem o terceiro argumento dos que contestam que a liberalização comercial seja a mais relevante premissa para acabar com a fome: a luta contra a pobreza absoluta passa, antes de tudo, pelo acesso à terra, à educação, a novas tecnologias produtivas e, sobretudo, a instituições estáveis que permitam melhorar a participação dos mais pobres em mercados dinâmicos e promissores.

Nenhuma das liberdades humanas básicas que compõem a essência daquilo que o Prêmio Nobel de Economia Amartya Sen define como “desenvolvimento” resultam automaticamente da liberalização comercial.

Aumentar a produção agropecuária é fundamental, como bem sublinhou o secretário-geral da ONU, mas o mais importante é criar condições para que os que vivem em situação de pobreza absoluta conquistem o direito de produzir a própria alimentação.

RICARDO ABRAMOVAY, 55, é professor titular do Departamento de Economia da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP, coordenador de seu Núcleo de Economia Socioambiental e pesquisador do CNPq.

 

Uma maior abertura comercial ajuda no combate à

fome?

SIM

Inflação e fome

LUIZ ROBERTO CUNHA

A ATUAL aceleração inflacionária no mundo, a “aginflação”, tem entre os seus principais componentes a alta dos alimentos.

Em 2007, na China, no Japão e em alguns países da África Central, cerca de 75% da inflação foi causada pelos alimentos; em outros países, como Chile, Peru e Equador, parte do Sudeste Asiático e do Leste da África, de 50% a 75% da inflação teve origem nos alimentos; em quase todo o resto do mundo, incluindo Brasil, Rússia, Índia, África do Sul, Egito, Arábia Saudita, Espanha e Europa Central, os alimentos contribuíram com cerca de 25% a 50% da inflação. Apenas os EUA, a Austrália e a maior parte da Comunidade Européia tiveram um impacto dos alimentos abaixo de 25% na sua inflação em 2007.

Esses dados são impressionantes, até porque, no início de 2008, os alimentos continuaram com forte alta, dessa vez mais concentradas no arroz e no trigo, itens básicos na dieta alimentar das populações de baixa renda na Ásia e na África. As conseqüências foram protestos e distúrbios sociais em muitos países.

Além disso, programas internacionais de combate à fome estão com grandes dificuldades não só pela elevação do custo, mas também pela falta de alimentos. Essa é a principal razão para os alertas da FAO sobre a gravidade da crise -a fome no mundo está aumentando.

Podemos listar um grande número de fatores responsáveis pela alta dos preços dos alimentos. O principal é o crescimento da demanda mundial, em grande parte gerada pelo desenvolvimento, pela urbanização e pela mudança de padrões alimentares em países emergentes, sobretudo China e Índia, com milhões sendo incorporados ao mercado nos últimos anos.

A melhor distribuição de renda em outros países emergentes, como no nosso caso, também é relevante, bem como a excessiva liquidez mundial, fruto da política monetária expansionista dos últimos anos nos EUA.

Do lado da oferta, problemas climáticos afetando a produção em todo o mundo e a utilização de grãos para biocombustíveis, especialmente nos EUA, têm diminuído acentuadamente os estoques mundiais.

A queda do dólar é também um fator importante, impactando cotações que buscamcompensar as perdas. O acentuado “choque” nos preços do petróleo, impactando custos.

A crise no mercado financeiro, carreando recursos para operações de hedge nos mercados futuros de commodities.

Ou seja, uma “tempestade perfeita”, a mais grave desde os anos 60, quando a Revolução Verde começou a ampliar a produção de alimentos, direta ou indiretamente vem contribuindo para a inflação dos alimentos.

Qual é a contribuição dos subsídios e das políticas de restrições à exportação nessa crise? É uma questão difícil de responder, especialmente num momento em que o preço dos alimentos virou questão de “segurança nacional”. Porém, dado o ambiente de proteção que existe no mundo, parece que estamos indo na direção errada.

A atual crise fez recrudescerem medidas de aumento de subsídios, reduções tarifárias e restrições à exportação pelo mundo. Essas medidas, para reduzir o impacto da alta sobre os consumidores, dependendo da gravidade da crise, podem até se justificar no curto prazo, mas tendem a agravar a oferta de alimentos no longo prazo.

Entre os maiores aumentos, temos o do arroz, uma das commodities menos comercializadas mundialmente (apenas 6%). Além disso, a história econômica demonstra que a “autarquização” nunca foi uma solução para a auto-suficiência.

Para que se possa ter uma nova Revolução Verde, considerando as maiores dificuldades atuais em aumentar a produtividade agrícola, os preços têm que refletir, pelo menos em parte, a escassez. Esse é o verdadeiro incentivo econômico, e não os subsídios, que, entre 2004 e 2006, segundo a OCDE, nos países-membros, alcançaram, em média, US$ 280 bilhões por ano. Recursos dessa magnitude, investidos em aumento de produtividade e apoio aos programas de combate à fome, sem dúvida seriam mais eficientes em termos econômicos e sociais para um mundo em crise.

LUIZ ROBERTO CUNHA, 62, é professor do Departamento de Economia e decano do Centro de Ciências Sociais da PUC-Rio.

 

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