Ricardo Abramovay[i]
Rigor na definição dos termos não pode ser encarado como uma espécie de luxo diletante reservado a um punhado de especialistas e de pouca incidência sobre a vida prática. Num ambiente cultural em que opiniões pessoais são expostas sem a menor preocupação com seus fundamentos ou sua consistência, a busca de precisão no significado e no uso das palavras torna-se condição básica do debate público democrático. A grande virtude do mais recente livro, seu vigésimo quinto, de José Eli da Veiga, professor titular da Universidade de São Paulo, é resgatar a sustentabilidade e o desenvolvimento sustentável da cacofonia generalizada que toma conta das expressões de grande sucesso. Não são chaves que abrem qualquer porta. Subjacentes às diferentes maneiras como os termos são empregados, encontram-se não apenas imprecisões e incoerências, mas visões de mundo que podem e devem ser amplamente discutidas.
O ponto de partida para entender o desenvolvimento sustentável é trata-lo como um valor, como “um dos mais generosos ideais da humanidade”. Isso não significa subjetivismo ou a tentativa de ensinar como o mundo deveria ser. É com base na ciência que o desenvolvimento sustentável, enquanto valor, pode ser compreendido. Razão pela qual, o livro tem início expondo as raízes históricas do desenvolvimento sustentável, bem como as principais controvérsias que o cercam.
O primeiro capítulo mostra que há um sério problema na mais consagrada definição de desenvolvimento sustentável, que consistiria em atender às necessidades da geração presente sem comprometer as chances de que as gerações futuras também o façam. A consideração pelos que virão é sem dúvida um ganho civilizatório. Além disso, incorpora ao objetivo de aumentar a riqueza a preocupação com as bases biogeoquímicas que permitem sua existência.
Apesar destas virtudes, é um grave equívoco reduzir o desenvolvimento à satisfação das necessidades (mesmo que esta seja sua pré-condição incontornável), como é praxe na tradição da ciência econômica. O livro descreve as idas e vindas no interior das Nações Unidas para que a definição de Amartya Sen (o desenvolvimento é o processo de expansão das liberdades substantivas dos seres humanos e de suas capacidades para fazerem escolhas) passasse a fazer parte não só dos documentos, mas da cultura das organizações multilaterais.
Desenvolvimento não é sinônimo de maior riqueza ou de mais consumo. Tão importante quanto os bens materiais é saber a que finalidades eles servem e, sobretudo, é avaliar o acesso dos indivíduos a bens públicos e serviços coletivos que definem seu lugar social e ampliam (ou limitam) suas chances de cooperação social. Liberdade política, uso real (e não só direito legal) da palavra, ausência de discriminação de gênero e de raça, por exemplo, são constitutivos do desenvolvimento, tanto quanto as condições materiais que dão base a estas liberdades. É a razão pela qual a liberdade é tratada por Sen e por José Eli da Veiga como substantiva e não apenas formal. É o que define a essência, a finalidade, a natureza ética do desenvolvimento. Longe de preceitos abstratos e normativos, esta essência pode ser medida, avaliada e sua concretização traduzida em políticas e comportamentos capazes de fortalece-la. Este fortalecimento se exprime na adoção dos oito Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, em que as Nações Unidas fixaram metas globais para o período 2000-2015.
Mas o mesmo raciocínio que reduz o desenvolvimento a formas eficientes de se obter bens materiais (crescimento econômico com produtividade) se mostra também na história tortuosa do adjetivo sustentável. Tanto nos Objetivos do Desenvolvimento do Milênio, como no célebre tripé (People, Profit e Planet) que se tornou mantra das organizações empresariais, faz-se do meio ambiente um componente, um aditivo (que até então faltava), uma dimensão ou um dos três pilares que servem para avaliar o desempenho da vida econômica. Este reducionismo faz vista grossa, por exemplo, à importância da paz e da segurança, condições óbvias do desenvolvimento e que não estão incluídas no canônico tripé. O fascinante neste livro é que longe simplesmente de expor uma opinião, José Eli da Veiga mostra como a própria ciência econômica, por meio de alguns de seus mais expressivos nomes, tem caminhado para uma definição mais ampla e generosa de desenvolvimento que a predominante até pouco tempo atrás.
Nem o debate público, nem as organizações multilaterais ficaram imunes a estes avanços cognitivos. Após apresentar as polêmicas que conduziram à definição do desenvolvimento sustentável como um valor no primeiro capítulo, o livro dedica o segundo e o terceiro capítulos a um apanhado didático e abrangente tanto sobre desenvolvimento como sobre a questão crucial dos limites ecossistêmicos ao crescimento econômico. A estes três (que sintetizam o necessário para entender o desenvolvimento sustentável) acrescentam-se dois outros de imensa atualidade.
O capítulo quatro analisa, sob perspectiva histórica, o imenso progresso embutido na passagem dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (2000-2015) para os dezessete Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), recentemente aprovados e com vigência para os próximos quinze anos. Este capítulo faz a comparação entre os ODS e um dos mais importantes relatórios produzidos por economistas nos últimos anos, o liderado por Joseph Stiglitz e Amartya Sen e que mostra a inadequação do PIB como medida do sentido social da riqueza. Veiga mostra que os ODS estão muito aquém da ambição do relatório Stiglitz[1]. Mas, ainda assim, é inegável a importância histórica do novo documento de orientação das Nações Unidas.
Por fim, o quinto capítulo discute diferentes caminhos para chegar à tão almejada descarbonização da economia global. São aí apontados novos mecanismos financeiros, que serão certamente discutidos nos próximos dias em Paris e que poderão acelerar o atual processo de transição para uma economia de baixo carbono.
Noções de natureza valorativa e ética, como desenvolvimento sustentável, podem e devem ser abordados de forma científica, ou seja, à luz dos debates públicos que lhes deram origem e com a preocupação de melhorar permanentemente os indicadores empíricos capazes de mostrar sua realização. É assim que a ciência pode ser colocada a serviço dos mais importantes ideais da espécie humana e é isso que torna este livro uma contribuição fundamental.
“Para Entender o Desenvolvimento Sustentável” José Eli da Veiga. Editora 34.
O livro será lançado no dia 10/12/2015, às 10 horas, na Sala Crisantempo (rua Fidalga, 521, São Paulo). Na ocasião, José Eli da Veiga conversará sobre o tema com os economistas Eduardo Giannetti e Marcos Lisboa, sob coordenação do jornalista Hélio Schwartsman.
[1] http://www.insee.fr/fr/publications-et-services/dossiers_web/stiglitz/doc-commission/RAPPORT_anglais.pdf
[i] Professor Titular do Instituto de Energia e Ambiente da USP, autor de Beyond the Green Economy (Routledge). www.ricardoabramovay.com – Twitter: @abramovay
[…] [1] http://www.insee.fr/fr/publications-et-services/dossiers_web/stiglitz/doc-commission/RAPPORT_anglais.pdf […]