Cidades segregadas, mal atendidas por transporte, infraestrutura e serviços urbanos atrapalham o desenvolvimento econômico e humano.
É em praticamente toda a América Latina que se interrompeu o virtuoso e inédito processo de redução da pobreza, da indigência e da desigualdade de renda que marcou o início do Século XXI. De fato, entre 2002 e 2013, o índice de Gini referente à renda (segundo o qual, zero corresponderia à completa igualdade e um à concentração de toda a renda nas mãos de um só indivíduo) caiu de 0,542 para 0,486. No entanto, desde 2012 a redução da pobreza estagnou e houve até um aumento da indigência.
O documento da Comissão Econômica da América Latina (CEPAL) em que estas informações são apresentadas lamenta que a recuperação da crise financeira internacional não tenha sido “aproveitada suficientemente para fortalecer políticas de proteção social que diminuam a vulnerabilidade diante dos ciclos econômicos”.
Mas, como mostram outros documentos tanto da CEPAL como do Banco Mundial, o que está em jogo nesta deterioração vai muito além da engenharia das políticas sociais, por maior que seja sua importância. A redução da pobreza, da miséria e da desigualdade de renda na América Latina padece de dois problemas estruturais decisivos, sem cujo enfrentamento ela dificilmente poderá avançar.
O primeiro é apontado num importante trabalho publicado pelo Banco Mundial. O trabalho mostra a fragilidade do contrato social latino-americano. Contrato social é definido como os “arranjos explícitos ou implícitos que determinam aquilo com que cada grupo contribui e aquilo que recebe do Estado”. Grande parte dos gastos do Estado dedicaram-se, historicamente, ao segmento de renda média, basicamente composto por trabalhadores formais. Estes benefícios estão muito longe de atingir a grande maioria da população, o que permite aos pesquisadores do Banco Mundial falar então de um estado de bem-estar “truncado”. Aposentadorias e seguro-desemprego são algumas de suas principais expressões. O permanente privilégio das infraestruturas voltadas ao automóvel é outra.
Durante as duas últimas décadas, e como resultado da própria democratização do Continente, o equilíbrio em que se apoiava este contrato social altamente concentrador começou, ainda que lentamente, a mudar. Aposentadorias para trabalhadores rurais que não contribuíram para a previdência e programas de transferência direta de renda para os mais pobres generalizaram-se. Pela primeira vez na história do Continente, o Estado atendia, com critérios universais e impessoais àqueles que se encontravam na base da pirâmide social.
Mas, apesar deste avanço, a alteração do contrato social foi limitada e fragmentária. Mesmo que a pobreza e a miséria absoluta tenham caído, não se alteraram substancialmente as oportunidades para a esmagadora maioria da população. E isso se deve ao fato de que o crescimento da renda das pessoas não foi acompanhado da expansão das condições objetivas que permitiriam, de fato, melhorar a qualidade de sua inserção social. Mesmo que parte importante dos trabalhadores tenha deixado a informalidade, sua formalização ocorreu predominantemente nos segmentos de mais baixa renda e em ocupações de escassa qualificação. Ao que tudo indica são exatamente estes segmentos que hoje estão mais ameaçados pela estagnação dos processos redistributivos que marcaram o Continente desde o início do milênio.
Como explicar os limites da redução da pobreza e da desigualdade? Se o crescimento econômico da América Latina nos últimos anos foi inclusivo, será que esta sua virtude pode ser mantida sobre a base de um contrato social tão fragmentário, em que as oportunidades para a maioria da população são ainda tão restritas? Vale a pena transcrever a hipótese da pesquisa do Banco Mundial para responder a esta questão. “No pós-guerra europeu, na China pós-revolucionária, na Coréia pós reforma agrária ou nos Estados Unidos sob o New Deal o progresso socioeconômico requereu, frequentemente, a combinação entre liberdade econômica e um salutar fundamento em educação pública, saúde e infraestrutura”.
Se, para usar a definição de Amartya Sen, desenvolvimento é o processo permanente de expansão das liberdades substantivas (e não apenas formais) que permitem ampliar as possibilidades de os indivíduos fazerem escolhas, isso significa que sem estes bens públicos e serviços coletivos de qualidade é perfeitamente possível que maior renda não se traduza em melhor qualidade na maneira como as pessoas se inserem socialmente. Além disso, mesmo que muitos destes serviços públicos (como a educação de base, por exemplo ou a saúde, no caso brasileiro) tenham se universalizado, sua baixíssima qualidade faz com que os segmentos emergentes de renda procurem deles sempre se afastar, buscando e pagando por serviços privados.
A partir desta comparação com países que se transformaram profundamente nas últimas décadas, o relatório do Banco Mundial mostra que o Continente está diante de uma encruzilhada histórica: “será que ele vai romper com o contrato social fragmentário herdado de seu passado colonial e, com isso, aprofundar e ampliar a redução das desigualdades ou vai ele agarrar-se ao modelo perverso em que a classe média exclui-se e afasta-se ainda mais destes serviços públicos”?
Até aqui, o contraste entre políticas redistributivas de renda e a precariedade dos bens públicos a partir dos quais os indivíduos se relacionam uns com os outros continua gigantesco. Estudo recente do Instituto Pólis, por exemplo, sobre o Programa Minha Casa, Minha Vida mostra que, de fato, populações de baixa renda têm sido contempladas, mas que tem prevalecido “um padrão de cidade segregada e sem urbanidade, pois são mal servidas por transporte, infraestrutura ou ofertas de serviços urbanos adequados ao desenvolvimento econômico e humano”. A frase vem de um manifesto assinado por dezenas de pesquisadores da UFRJ, da USP, da UFMG e de outras entre as melhores universidades brasileiras, envolvidos com o trabalho do Pólis. Os especialistas prosseguem: “Verificamos uma inadequação das alternativas ofertadas em relação às estratégias de sobrevivência das famílias, especialmente em função da localização periférica e distante das fontes de emprego da cidade”.
Em outras palavras, mesmo que a renda das famílias tenha aumentado (pelo acesso à casa própria) isso não se traduz no que é essencial para a redução das desigualdades e, portanto, para a ampliação das liberdades substantivas das pessoas.
O próximo artigo desta coluna vai abordar o segundo problema estrutural que bloqueia a redução da pobreza e das desigualdades na América Latina, mencionado no início deste texto: o padrão de crescimento econômico do Continente.
Ricardo, parabens pelo excelente post. Acho que de maneira simples e clara voce conseguiu expor, suportado por dados o problema que assola nossa querida America Latina.
Ricardo, excelente artigo. Vou utiliza-lo na minha disciplina de DSE. Os elementos fundamentais estão muito bem colocados, de forma clara e sólida.