A ruralidade é um valor ao qual o mundo contemporâneo atribui crescente importância, por seu significado na preservação da biodiversidade e no estilo de vida cada vez mais procurado pelos habitantes dos grandes centros
Por: Janice Kiss. Publicado no Globo Rural, edição 296, junho de 2010. Disponível em: http://revistagloborural.globo.com/GloboRural/0,6993,EEC597286-2344,00.html
O Brasil rural está sendo redescoberto. As regiões interioranas, que abrigam um terço dos brasileiros, ou mais de 50 milhões de pessoas, deixaram de ser vistas como espaço único para a produção agropecuária. Nelas surgiram atividades ligadas à preservação ambiental – ecoturismo é uma delas – e à manutenção da agricultura familiar. O livro O Futuro das Regiões Rurais, lançado neste mês e de autoria de Ricardo Abramovay, professor da FEA – Faculdade de Economia e Administração, da Universidade de São Paulo, analisa as novas dimensões da ruralidade. Nele e na entrevista a seguir, o professor mostra o quanto estavam equivocadas as previsões de que o rural acabaria conforme avançasse o processo de desenvolvimento.
Globo Rural – Qual é o futuro das regiões rurais?
Ricardo Abramovay – A revalorização das regiões interioranas é um dos mais importantes fenômenos demográficos, sociais e culturais do início do milênio. Nossa civilização habituou-se a enxergá-las como local da produção agropecuária, no qual os imperativos da eficiência seriam incompatíveis com a manutenção de um tecido social rico e diversificado. Os últimos anos vêm mostrando fontes de desenvolvimento associadas não só à manutenção da integridade ambiental e paisagística das regiões interioranas, e uma imensa capacidade de organização para fazer destes atributos as bases da geração de ocupação e renda. A explosão do ecoturismo e do turismo rural é apenas um exemplo deste processo.
GR – Seria uma reinvenção do rural?
Abramovay – De certa forma, sim, uma vez que o rural cada vez menos se associa ao estritamente agrícola. E o agrícola cada vez mais será marcado por exigências de qualidade, de distinção e de atributos ligados à localização e aos conhecimentos de cada região. Isso já é comum na Europa: o produto rural (agrícola e não agrícola) é valorizado por sua capacidade de exprimir uma tradição, um modo de fabricação em que se recuperam culturas e se colocam à mostra estilos de vida que os habitantes dos grandes centros têm buscado. Estes novos atributos tornaram equivocadas as previsões de que o rural acabaria conforme avançasse o processo de desenvolvimento. Assim como nas cidades não existem apenas indústrias, no meio rural, tampouco, não há só agricultura e agricultores.
GR – A participação da agricultura familiar é essencial para o Brasil rural?
Abramovay – Ela garante a existência de um tecido social que vai gerar diversas atividades além da própria agricultura. Não é um momento transitório que será suprimido quando o progresso chegar. Isso não aconteceu nos países desenvolvidos e não vai acontecer aqui. A agricultura familiar conseguiu se afirmar em setores extremamente modernos: na produção de aves, suínos, fumo, produtos ligados a mercados internacionais. De maneira geral, no Brasil, esse segmento responde por cerca de um terço do valor da produção de toda a agricultura. No coração do capitalismo mundial – as planícies norte-americanas, centro e norte da Europa – a agricultura é de natureza familiar e o trabalho assalariado excepcional.
GR – Apesar disso, a unidade familiar de produção sofre com o êxodo rural.
Abramovay – O êxodo rural hoje é muito menor que no passado. Há diversas regiões rurais que passam por surpreendente processo de crescimento populacional, com base, muitas vezes, em migração de retorno, daqueles que perderam seu emprego nas metrópoles e voltam ao lugar de origem. Mas é claro que existe ainda uma migração rural importantíssima. E ela atinge fundamentalmente os jovens e especialmente as meninas. Hoje, o campo brasileiro passa por um duplo processo: de envelhecimento e de masculinização. O mesmo ocorreu na Europa e nos Estados Unidos. Aqui no Brasil, as moças tendem a freqüentar mais a escola que os rapazes e a educação acaba servindo como uma espécie de passaporte para o ingresso em ambientes urbanos de trabalho. Um estudo que realizei com a Epagri, no oeste de Santa Catarina e junto a filhos de agricultores familiares, mostra que ficam na propriedade os que têm a pior escolaridade. Ora, são estes os que terão responsabilidade de gestão da unidade produtiva, no futuro. A deficiência educacional, neste caso, é grave porque significa que o patrimônio nacional fundiário está sendo gerido por pessoas de capacitação muito baixa. Nosso estudo mostra que dois terços dos jovens entre 15 e 24 anos tinham apenas até a quarta série primária. Portanto, o desafio da agricultura familiar é educacional, pois ela só será competitiva se os seus gestores receberem uma formação que os capacite a integrar os mercados dinâmicos.
GR – Por que a multifuncionalidade na agricultura está sendo tão discutida?
Abramovay – É um tema que os europeus estão trazendo para a discussão da OMC – Organização Mundial do Comércio. Consiste no fato de que as sociedades contemporâneas vão retribuir ao agricultor por atividades que o mercado é incapaz de pagar, como a preservação ambiental, por exemplo. A Europa está diante de um duplo desafio: manter seu lugar no mercado mundial e atender a uma pressão crescente de sua opinião pública por definições de políticas voltadas ao desenvolvimento rural. Os negociadores brasileiros junto à OMC têm razão de temer que a multifuncionalidade seja usada como arma protecionista. A verdade é que a produção em larga escala de grãos e carnes nos países centrais só sobrevive com farta injeção de dinheiro público. A briga na Europa é entre os setores que desejam que estes recursos se voltem a serviços sociais e ambientais relevantes – e que não deveriam prejudicar os países em desenvolvimento – e os maiores produtores, que não sobrevivem sem subvenções. A multifuncionalidade pode ser, de fato, areia nos olhos para encobrir interesses protecionistas. Mas traz à tona uma pergunta mais interessante: o que querem as sociedades contemporâneas de seu meio rural? Apenas produção agropecuária? A resposta dos europeus e as políticas que eles têm colocado em prática mostram que o meio rural pode oferecer um conjunto de bens, de serviços e de valores fundamentais para a civilização do século 21.
Perfil
Nome Ricardo Abramovay
Idade 50 anos
Formação sociólogo
Função professor titular do Departamento de Economia da FEA e do Programa de Ciência Ambiental, da USP, São Paulo
Idéias O meio rural não é apenas agricultura, indústria e comércio. Ele é a manutenção ambiental das regiões interioranas e a imensa capacidade de organização para fazer destes atributos as bases da geração de ocupação e renda