Artigo publicado no jornal Valor Econômico em 14/06/2007.
Qual a população rural dos Estados Unidos? A maioria dos leitores não hesitará em responder: 2 ou 3%. Na verdade, 20% dos americanos são considerados rurais, pelas estatísticas oficiais. Os 2 ou 3% referem-se à população economicamente ativa na agricultura. A diferença entre as duas categorias – população economicamente ativa na agricultura e população rural – é decisiva sob o ângulo científico e político.
Nos países desenvolvidos, o declínio da importância da agricultura na ocupação de mão-de-obra e na criação de riqueza nem de longe foi acompanhado por uma proporcional redução da relevância das áreas rurais na vida nacional. É que a ruralidade, nesses países, é definida por um critério territorial, geográfico e referente à maneira como as pessoas vivem: são rurais as áreas com densidade demográfica relativamente baixa e grande proximidade de ecossistemas relativamente pouco alterados pela ação humana. Essas áreas deixaram de ser fundamentalmente fornecedoras de matérias-primas, converteram-se em bases atraentes para a instalação industrial a partir do final da Segunda Guerra Mundial e, hoje, tornaram-se importantes pela capacidade de oferecer serviços e amenidades ambientais que atraem populações de aposentados e muitos dos que querem escapar dos grandes centros. O desenvolvimento rural nesses países, portanto, não pode ser concebido sob uma ótica setorial, como se a expansão da agricultura fosse sua condição necessária e suficiente. A ruralidade é uma noção de natureza territorial que, por definição, abrange diversos setores econômicos.
Longe de ser uma particularidade exclusiva dos países desenvolvidos, a perda de importância da agricultura e dotrabalho agrícola no mundo rural é um fenômeno internacional generalizado – cujo ritmo, evidentemente, pode ser mais ou menos acelerado. Os trabalhos do Projeto Rurbano, dirigido por José Graziano da Silva, mostram que a renda da população vivendo naquilo que o IBGE define como área rural, no Brasil, vem, cada vez mais, de fontes não agrícolas. Além disso, os trabalhos de José Eli da Veiga indicam que, caso o espaço rural se definisse a partir de variáveis demográficas (e não administrativas, como a lei obriga o IBGE a fazer) sua magnitude seria outra: no rural brasileiro não vivem apenas 18% da população – o que nos faria, absurdamente, mais “urbanos” que os EUA e a Europa Ocidental – e sim um em cada três habitantes.
É claro que o peso da agricultura entre nós é e será por bom tempo mais importante que nos países desenvolvidos. Mas é óbvio também que o desenvolvimento rural não pode ser confundido com o crescimento da agricultura. O desafio (científico e político) está em descobrir as fontes e as oportunidades de diversificação do tecido social, econômico e cultural das regiões rurais e não em apostar todas as fichas num setor só, por mais promissor que seja imediatamente.
É sobre esse pano de fundo que Arilson Favareto escreveu “Paradigmas do Desenvolvimento Rural em Questão” que acaba de receber o prêmio de melhor tese de doutorado de 2007 da prestigiosa Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional (Anpur). Longe de ser um trabalho técnico ou restrito aos interesses específicos dos “agraristas”, o livro de Favareto é a melhor introdução em língua portuguesa ao estudo de um tema que, infelizmente, até aqui ainda não repercutiu em nossas políticas públicas: o desenvolvimento territorial. O livro é importante não só pela maneira didática como organiza a discussão em torno de roulette desenvolvimento e ruralidade nos países centrais e em desenvolvimento, mas, sobretudo, pela visão que oferece a respeito do sentido do desenvolvimento territorial.
A diversificação do mundo rural traz consigo, inevitavelmente, aquilo que o sociólogo alemão Max Weber chamou de desencantamento do mundo, num processo acelerado de racionalização das relações humanas. As grandes figuras que marcam nossa visão da ruralidade – do sertanejo de Euclides da Cunha aos personagens de Rachel de Queiroz, passando por Diadorim de Guimarães Rosa e Fabiano de “Vidas Secas” – são substituídas não apenas pelas multidões épicas dos “sem-terra”, mas, cada vez mais, por um conjunto variadode atores, cujas relações sociais não reproduzem os laços tradicionais de clientela e dependência personalizada do interior do país. Novas exigências administrativas e técnicas na gestão dos estabelecimentos agropecuários, o peso do financiamento bancário com sua racionalidade própria, a importância dos interesses econômicos do comércio, da indústria e dos serviços nas regiões rurais, tudo isso destrói a idéia idílica de que um tipo humano especial emerge do mundo rural e que a sociedade teria interesse em preservar como espécie ameaçada de extinção. Os processos migratórios e a extraordinária mobilidade da população impedem que a ruralidade seja definida a partir de atributos culturais próprios e estranhos aos do mundo urbano.
A contrapartida desse desencantamento, porém, é que as diferentes culturas e os diferentes modos de ser rurais cada vez mais são convidados a enfrentar desafios de natureza universal, como a criação de oportunidades de geração de renda, a preservação do meio ambiente e a transformação de seus espaços, não em fortalezas protegidas do progresso, mas em localidades capazes de atrair investimentos em função de seus ativos mais nobres, como os ambientais, os culturais e os que derivam de seu próprio tecido social. Movimentos como o “Slow Food”, a difusão de selos orgânicos, solidários ou com marcas regionais exprimem um processo de racionalização que faz das culturas rurais um elemento da própria construção dos mercados.
O rural não é definido pelo setor agrícola, mas isso não o torna uma espécie de mundo mágico existente à margem do conjunto da sociedade e da racionalidade econômica. Seu processo de racionalização coloca-o diante de oportunidades inéditas de afirmação social, cultural e política que o livro de Favareto ajuda a descobrir.
“Paradigmas do Desenvolvimento Rural em Questão” (Fapesp/Iglu, 220 pags., R$ 35) será lançado no auditório da livraria Cultura do Shopping Villa-Lobos, em São Paulo, na quinta-feira, 5, às 19h30, com debate aberto ao público.
Ricardo Abramovay é professor titular do departamento de economia da FEA e do Programa de Ciência Ambiental da USP