Artigo publicado no Jornal de Resenhas – Folha de S. Paulo – 14/02/04 – p. 11
A tradição da psicologia empirista britânica a partir de Thomas Hobbes, no Século XVII, fez do conceito de racionalidade a pedra angular do pensamento econômico. Mesmo que todos os homens não sejam igualmente hábeis em sua capacidade de adequar os meios com que contam aos fins que almejam, na média e ao longo do tempo, eles o são e seu comportamento pode ser compreendido com base num conjunto de regras universais cujo conhecimento é objeto de ciência. A racionalidade pode variar do obscuro e destrutivo pessimismo de Hobbes à simpatia democrática de Locke ou Adam Smith; pode ser transparente e sua comunicação totalmente fluida, como em Walras, ou incompleta, imperfeita, como, cada vez mais, é o caso, nas teorias econômicas contemporâneas. Em todo caso, faz parte desta tradição — que se inaugura com Hobbes, se consolida no iluminismo britânico e que dá a marca distintiva da ciência econômica contemporânea — tratar a racionalidade como premissa lógica.
O conceito de racionalidade é central na obra de Max Weber, mas num sentido bem diferente daquele que se consolidou na economia a partir da tradição britânica. Para Weber, racionalização é um longo processo histórico que resulta na formação dos próprios pilares do Ocidente, de uma civilização caracterizada, como é dito na primeira frase de A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, por “fenômenos culturais dotados…de um desenvolvimento universal em seu valor e significado”. Quem ler a dezena de páginas da Introdução da Ética Protestante verá, de forma surpreendente, o processo de racionalização tomando conta de todas as dimensões da vida social: da música, da arquitetura, da história, da ciência, do Estado, do capitalismo e até mesmo da religião. A universalidade no valor e no significado dos fenômenos culturais do Ocidente só pode ser compreendida como produto de circunstâncias histórico-concretas e não como expressão triunfante de uma capacidade genérica, abstrata. E é o que torna a obra de Weber muitas vezes de difícil leitura para o estilo dominante hoje nas ciências sociais: seus textos sempre procuram reunir elementos históricos e sociológicos os mais variados, sem que haja um roteiro explicativo previamente formulado ou leis históricas abstratas das quais os fatos reunidos pudessem aparecer como ilustrações ou casos. Apesar disso, Weber forjou conceitos gerais cuja atualidade nas ciências sociais contemporâneas é inegável. Mais que isso, mostrou — de forma histórica e não nomotético-dedutiva — um longo processo de racionalização, estudado no último livro de Antônio Flávio Pierucci sob o registro de um conceito central: o desencantamento do mundo.
O rigor e a abrangência da bibliografia utilizada por Pierucci não fazem de seu livro um texto técnico e acessível apenas a especialistas. Talvez seja exagero dizer que o livro se lê como um romance, mas a verdade é que Pierucci expõe uma trama, organiza suas idéias em torno de um roteiro: durante alguns anos, ele leu a obra de Max Weber e assinalou todas as vezes que aparece a expressão que dá o título de sua obra. Fez isso manualmente e deu com o desencantamento do mundo em apenas dezessete vezes. Examinou cada uma destas expressões e escreveu assim um livro que acaba sendo um panorama impressionante e extremamente didático da obra de Max Weber.
Pierucci começa o livro alertando que Max Weber não é um sociólogo da religião, apesar de ter dedicado aos fenômenos religiosos parte imensa de sua obra. A religião é, paradoxalmente, uma das mais importantes modalidades sociais de racionalização: as grandes religiões mundiais só se consolidam por sua oposição à magia. Na verdade, a magia responde a uma lógica instrumental próxima à do utilitarismo: o comércio com os deuses tem objetivos práticos, imediatos e o recurso a expedientes mágicos se apóia no poder de um grupo reconhecido socialmente por suas capacidades de mobilização deste universo mágico. As grandes religiões mundiais (a começar pelo judaísmo antigo) substituem justamente a magia prático-instrumental, voltada a deuses diversos, por um Deus que se caracteriza não por meios mágicos de intervenção imediata na vida dos homens, mas pela formulação de uma ética universal, que será interiorizada e transformada em regra de conduta cotidiana. É com a formação do judaísmo antigo que se origina o processo de desencantamento do mundo, entendido como “desmagificação”, ou seja, a construção de um universo religioso que vai suprimindo cada vez mais a magia por crenças de natureza ética. Este processo culmina no protestantismo e na supressão de qualquer relação ritual entre as criaturas e o Criador. É um belo exemplo daquilo que define a própria sociologia: o sentido que os próprios indivíduos atribuem a sua ação.
Além da desmagificação, desencantamento do mundo tem um outro significado: perda de sentido. O texto emblemático a este respeito é a célebre conferência que Weber fez a estudantes de Munique a partir da pergunta: qual o sentido da ciência para os jovens que estão no momento de escolher uma profissão? A ciência retira sentido do mundo, já que faz dele, um “cosmos da causalidade natural”, algo perfeitamente explicável e, portanto, desprovido de mistério. Ao mesmo tempo, a ciência se caracteriza exatamente pela impossibilidade de uma visão única, completa, acabada a respeito dos fenômenos que estuda: ela é provisória por definição e aí reside exatamente sua força, que consiste sempre em ser superada por novos avanços. Mas isso quer dizer que a ciência não é capaz de fornecer resposta a questões essenciais a respeito do sentido da vida e da morte, por exemplo. Buscar na ciência a receita para a conduta individual ou social é abrir o caminho para o totalitarismo. O cientista não é um formulador de utopias e sim alguém cuja contribuição social está em sua capacidade crítica, na elaboração e utilização de conceitos claros que permitam compreender inclusive as utopias enquanto fenômenos sociológicos.