Artigo publicado no jornal Folha de São Paulo, 4/11/02 – p. A3
O grande trunfo da pujante expansão agrícola nos cerrados nordestinos é, até hoje, a terra barata
Dois caminhos são propostos hoje à sociedade brasileira para a luta contra a pobreza, nas regiões rurais do Nordeste. O primeiro consiste em expandir os setores produtivos capazes de rápida incorporação de mudanças técnicas. Agricultura irrigada, indústrias têxteis e de calçados e, em menor proporção, pólos de inovação (como o de Campina Grande, por exemplo) formam as bases de um crescimento capaz de aumentar a demanda por mão-de-obra e, por aí, o nível de salários e os padrões de vida das regiões onde se implantam.
De certa forma, estas iniciativas econômicas sintetizam a visão que dominou quase exclusivamente a formulação explícita das estratégias de desenvolvimento das agências governamentais do Nordeste até muito recentemente: garantir infra-estruturas e recursos para empresários inovadores, eis uma rota aparentemente incontestável para o crescimento econômico e, conseqüentemente, para o próprio bem-estar social. Por esta concepção, existe um setor econômico tradicional e o processo de desenvolvimento consiste exatamente em sua substituição por um outro, de caráter moderno.
Em que pese, entretanto, a importância das inovações técnicas em diferentes segmentos produtivos do Nordeste contemporâneo, seu raio de ação e seus efeitos sobre os ambientes sociais da região são, com muita freqüência, tímidos, localizados e, por vezes, destrutivos. O grande trunfo da pujante expansão agrícola nos cerrados nordestinos, por exemplo, é, até hoje, a terra barata, ou seja, a ignorância, por parte do sistema de preços, dos custos associados ao extermínio da biodiversidade, como bem mostra o capítulo sobre agricultura sustentável da Agenda 21 brasileira. Daí resulta a contradição básica de um padrão de crescimento capaz de propiciar aumento de ocupação e renda, mas apoiado fundamentalmente – não apenas, é claro — na discutível vantagem comparativa que representam terras e mão-de-obra sub-valorizadas.
O segundo caminho postula, por isso mesmo, que esta modernização será excessivamente lenta para promover crescimento de renda e ganho de iniciativa por parte dos indivíduos. Sua premissa básica pode ser assim formulada: é na mutação das próprias atividades tradicionais que se decide o destino do processo de desenvolvimento. Existem possibilidades de crescimento econômico, baseadas em mudanças técnicas ao alcance de famílias hoje vivendo em situação de muita pobreza, mas que podem aumentar, proporcionalmente, sua renda de forma significativa com base em investimentos relativamente modestos. O programa de construção de um milhão de cisternas levado adiante pela Articulação do Semi-Árido — entidade que envolve importantes segmentos dos setores privado, estatal e associativo da região — exprime este caminho em que recursos públicos, voltados à satisfação de necessidades básicas, tornam-se fatores de geração de ocupação e renda e não apenas de sobrevivência.
As melhorias técnicas voltadas, no semi-árido, à convivência com a seca — como os sistemas que integram sisal e caprinocultura, sob orientação da Associação dos Pequenos Agricultores da Bahia (APAEB) e aqueles preconizados também pela EMBRAPA — indicam igualmente um caminho de crescimento econômico que associa combate à pobreza, aumento do produto e valorização dos recursos naturais. Aqui, as inovações sociais e organizacionais é que são as premissas para um conjunto de mudanças técnicas e econômicas, capazes de alterar de maneira expressiva as condições de vida de milhões de pessoas. Pequenos investimentos em infra-estruturas, planos habitacionais, prestação de serviços de saúde e melhor aproveitamento de capacidades técnicas locais nada disso é espetacular sob o ângulo do crescimento macroeconômico, mas pode desempenhar papel crucial na geração de emprego e no fortalecimento do tecido econômico local.
Este segundo caminho supõe a continuidade das transferências de renda de que vive hoje parcela tão importante da população e dos municípios do Nordeste. Mas ele exige também modificação decisiva no formato institucional desta atribuição de fundos. Fazer da transferência de renda a famílias e regiões pobres a base da formulação de projetos capazes de ampliar sua iniciativa e suas capacidades, eis o sentido estratégico geral deste segundo caminho de luta contra a pobreza.
O desenvolvimento rural brasileiro será necessariamente composto por estes dois caminhos de crescimento: não se trata de desprezar a importância dos pólos de crescimento econômico do Nordeste. Mas é fundamental fazer do combate direto à pobreza absoluta uma forma de gerar ocupação e renda, sobretudo nas regiões mais pobres do País.