As redes sociais dos fungos estão transformando a ciência

UOL Tab passa a ter conteúdos diários – Meio & Mensagem12/12/2021

A ciência moderna foi inaugurada, de certa forma, com a famosa frase de Galileu Galilei (1564-1642): “o grande livro da natureza foi escrito em língua matemática e seus caracteres são triângulos, círculos e outras figuras geométricas”. O mais importante nesta definição é que a natureza está posta e dada diante de nós como puro e passivo objeto, à espera de nossa capacidade interpretativa.

É uma atitude intelectual que coloca a ciência numa espécie de torre de marfim, tanto mais eficiente quanto mais isolada e protegida contra expressões do espírito humano que não fazem parte de seus protocolos. É uma visão de mundo segundo a qual quem fala somos nós e a natureza apenas responde, por meio de nossa inteligência, que lhe decifra os signos.

Mas os vidros desta redoma estão se quebrando. Inteligência das plantas (que não é o mesmo que nossa inteligência em compreender as plantas) é um termo cada vez mais frequente no vocabulário científico. Em 2018, o engenheiro florestal Peter Wohlleben publicou A Vida Secreta das Árvores, caracterizando as florestas como “superorganismos com interconexões semelhantes às de colônias de formigas”. Muito mais que processos competitivos em busca de nutrientes e luz, as árvores desenvolveram métodos e sinais que lhes permitem proteger-se cooperativamente contra predadores.

A neurobiologia das plantas é uma disciplina inaugurada em 2006 por um grupo de autores, entre os quais Stefano Mancuso, que participou, junto com Evando Nascimento de uma linda mesa redonda na FLIP 2021, que buscou na floresta sua inspiração e teve no termo nhe’éry (pronuncia-se nheeri) seu mote. Nhe’éry é como o povo Guarani chama a Mata Atlântica. A palavra significa: onde as almas se banham. Além disso, como explica Carlos Papá, cineasta e liderança do povo guarani, nhe’éry conduz mensagens através de fios de palavras.

Esta elaboração indígena converge com a constatação científica de que os mecanismos genéticos e bioquímicos são insuficientes para explicar a sensibilidade e a capacidade de resposta das plantas ao ambiente. As plantas possuem sistemas elétricos e químicos que em nada ficam a dever àqueles que o processo evolutivo dos animais materializou em seus cérebros.

Mas não é só nas plantas e nos animais que estes sistemas elétricos e químicos são componentes decisivos de sua evolução. É de um jovem biólogo britânico, Merlin Sheldrake, a autoria de um livro fascinante pelo rigor, pela clareza e, ao mesmo tempo, pela poesia, que vai buscar nos fungos o sentido da vida e, talvez não seja exagerado dizer, o sentido da vida humana.

Se você já assistiu o documentário da Netflix “Fungos Fantásticos” lerá o livro de Sheldrake com prazer redobrado. A excelente tradução de Gilberto Stram deu ao título original em inglês (“Entangled Life”) uma versão adequada a nosso idioma: “A Trama da Vida”.

O componente dramático do título faz jus a um livro que se lê como um romance e sobretudo a seu subtítulo: “como os fungos constroem o mundo”. Os fungos são protagonistas. Nós somos seus produtos. Eles estão dentro de nós e fora de nós. Eles são os mais importantes engenheiros dos ecossistemas de que dependemos. Os fungos sentem e interpretam o mundo ativamente, mesmo que os humanos não consigam saber como é, para os fungos, sentir e interpretar o mundo.

Foram eles, há quinhentos milhões de anos, que permitiram que as algas saíssem de seus ambientes aquáticos e pudessem ocupar o hostil meio terrestre, alterando a composição química do que veio a ser nossa atmosfera, dando lugar às plantas e, posteriormente, aos animais.

A extensão total dos micélios (as ramificações emaranhadas que carregam os nutrientes para onde os fungos os dirigem e respondem por seus processos de simbiose com as plantas) é estonteante: nos dez centímetros do topo dos solos do planeta, os micélios ocupam uma extensão correspondente à metade da superfície de nossa galáxia. É com base neles que os solos abrigam nada menos que 25% de todas as espécies da Terra e 75% de todo seu carbono.

O livro de Sheldrake é um convite para repensar alguns dos mais importantes lugares comuns do pensamento científico. Em primeiro lugar, ele mostra que, contrariamente à imagem de Galileu, a natureza tem uma linguagem própria cuja analogia mais próxima ao que conhecemos é a rede social e não triângulos, círculos e outras figuras geométricas.

As plantas são conectadas por redes sociais de fungos, que estabelecem sistemas elaborados de simbiose e cooperação. A trama da vida não pode ser pensada apenas em termos de competição e conflito. Sheldrake dedica um capítulo do livro à “intimidade entre estranhos” para repensar a própria noção de indivíduos, a partir de exemplos retirados das relações entre fungos, plantas e animais.

Um segundo lugar-comum que Sheldrake abala encontra-se no capítulo que ele dedica à “micologia (de mikes, que em grego significa cogumelo) radical”. A micologia radical é parte do movimento faça você mesmo (“do it yourself”) que emergiu na cena psicodélica dos anos 1970. É expressão de um traço fundamental da ciência do século 21, que é a ciência cidadã. Ela conta com participação pública, leiga e amadora na pesquisa. Na área dos fungos (e de sua expressão visível, os cogumelos) esta participação é crescente e objeto de encontros importantes.

Técnicas de cultivo em espaços domésticos difundem-se rapidamente. Um dos incentivadores mais conhecidos deste cultivo ensina as pessoas a treinar cepas de fungos capazes de contribuir à regeneração de ambientes degradados ou à produção de bens até aqui fabricados com materiais poluentes.

A equipe do INPA, dirigida por Noemia Ishikawa (ícone internacional nesta área) e levada pelo indígena Aldevan Baniwa, registrou, ao final de novembro, os Brilhos da Floresta, um conjunto de fungos bioluminescentes, usados como iluminadores de trilhas em São Gabriel da Cachoeira.

E é exatamente lá que o General Augusto Heleno (chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República e um dos expoentes do fanatismo fundamentalista brasileiro) acaba de ceder ao garimpo áreas protegidas para exploração de ouro e nióbio. Quem só consegue ver na natureza uma inimiga a ser devastada jamais terá olhos para as mais importantes e promissoras riquezas da floresta e muito menos para a inteligência das plantas e dos fungos.

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