Amazônia protagonista da bioeconomia

Valor Econômico. 9/07/2020 p. A19

As florestas tropicais estão ausentes da mais consagrada literatura científica e de políticas públicas sobre bioeconomia. As Academias de Ciências, de Engenharia e de Medicina dos EUA acabam de publicar um relatório mostrando que a bioeconomia corresponde a 5% do PIB norte-americano, que a competição global em torno das conquistas tecnológicas da área se intensifica e que os dispositivos da revolução digital estão fazendo da bioeconomia uma das fronteiras científicas mais importantes para o desenvolvimento sustentável. Mas é em vão que o leitor procurará no texto alguma referência às florestas tropicais.

O relatório do Conselho Alemão de Bioeconomia sobre as estratégias de bioeconomia ao redor do mundo localiza 50 países já dotados de planos para o setor. Mas quando se trata de florestas, a ênfase é na produção de biomassa para substituição de energias fósseis ou para a elaboração de novos materiais, sobretudo nos países de clima temperado. Mesmo no recente trabalho recente da CEPAL, Towards a Sustainable Bioeconomy in Latin America and the Caribbean, as florestas tropicais não são decisivas na bioeconomia sustentável.

Para os nove países em cujos territórios encontra-se a maior floresta tropical do Planeta – e sobretudo para o Brasil – esta ausência só pode ser tratada como um paradoxo. Pior, como trágica anomalia. A Amazônia possui 40% dos remanescentes de floresta tropical no mundo e 25% da biodiversidade terrestre, com quarenta mil espécies de plantas. Sua rede fluvial (a maior do Planeta), concentra mais espécies de peixes que qualquer outro sistema de rios. O carbono que ela armazena é equivalente a mais de dez anos das emissões globais de gases de efeito estufa.

Não basta impedir sua destruição, embora este seja o ponto de partida para que suas gigantescas riquezas sejam aproveitadas. Os países onde está o epicentro científico e tecnológico da bioeconomia global (Estados Unidos e Alemanha) possuem centros de pesquisa, empresas, movimentos sociais, organizações financeiras, em suma, uma rede diversificada de atores voltada a encontrar soluções para substituir energias fósseis e moléculas sobre as quais vão se apoiar algumas das mais notáveis inovações do Século XXI em alimentação, energia e produção de materiais.

Interromper a devastação, respeitar a cultura material e espiritual dos povos da floresta é apenas o ponto de partida para enfrentar um desafio maior que é a inclusão da Amazônia no radar das iniciativas e dos investimentos em bioeconomia. Esta inclusão não é importante apenas para a Amazônia e sim para o Brasil, pois representa a oportunidade de valorizar ativos dos quais o restante do mundo não dispõe e, por aí, reduzir a distância que nos separa da inovação científica e tecnológica global.

A discussão pública sobre este tema ganhou novo ímpeto com os artigos publicados pelo ministro Luís Roberto Barroso em co-autoria com a professora Patrícia Perrone Campos Mello na Folha de São Paulo e na Revista de Direito da Cidade. O debate foi enriquecido pela carta pública que Denis Minev dirigiu a Barroso e Campos Mello. Denis Minev conhece a Amazônia não só por estuda-la e nela ter exercido cargos públicos, mas por dirigir hoje uma das mais importantes redes de varejo do interior da região, a Bemol e por ter atuado como investidor anjo em diversos projetos.

Neste debate, não se trata de polir a “imagem” da Amazônia, como se houvesse recurso publicitário capaz de apagar o que os dados da devastação revelam. Trata-se sim de estabelecer as premissas de uma verdadeira estratégia para que ciência, tecnologia, informação e conhecimento sejam os vetores do uso dos recursos na região. O primeiro passo neste sentido consiste em levar a ciência a sério. Como diz a carta de Minev, o mais importante centro de pesquisa da região, o INPA, tem orçamento de R$ 50 milhões. Só a Universidade de Stanford conta com recursos de US$ 6,8 bilhões. O Brasil possui doutores vivendo na Amazônia e centros de pesquisa que poderiam fazer avançar muito o conhecimento e a utilização prática da sua biodiversidade, com base na melhor ciência. Mas não existe uma estratégia nacional nesta direção. É como se o país tivesse se habituado com a posição de fornecedor de commodities e renunciado a qualquer ambição de ter alguma importância na fronteira global da inovação.

Esta renúncia se traduz na tolerância com o status quo de ilegalidade que impera na região. Além da criminalidade, a ilegalidade se difunde de forma pervasiva por todo o tecido econômico da Amazônia e se ergue como obstáculo a iniciativas sustentáveis envolvendo atores diversificados. E a própria concepção predominante de infraestrutura na Amazônia hoje reflete a ambição míope de fortalecer as cadeias de valor menos promissoras da região e que, além de não gerar retorno expressivo aos que nela habitam acabam sendo vetores de desmatamento. Mais que meios de transportes de grãos e carnes, a Amazônia precisa de conexão de alta velocidade, de soluções sustentáveis para seus problemas de acesso a saneamento básico e incentivos a tecnologias modernas e descentralizadas para a geração de energia.

O Brasil democrático quer a Amazônia em pé. Os povos da floresta, os empresários responsáveis, os investidores com visão de futuro, as organizações ativistas e a cooperação internacional são os principais componentes de uma rede que só vai conseguir fazer jus ao que a Amazônia representa para o Brasil, quando houver governantes que assumam a liderança de uma estratégia para que sejamos protagonistas da bioeconomia global.

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Duas características inéditas marcam o capitalismo do Século XXI. A primeira é a exposição voluntária das bases socioambientais em que se apoiam seus processos produtivos por parte de organizações empresariais. A segunda é que esse movimento de abertura dos fundamentos materiais, biológicos, energéticos e, em certa medida, sociais dos empreendimentos resulta de pressões vindas de atores que até bem pouco tempo quase não dialogavam com firmas privadas e sequer faziam delas o foco de sua ação.