Artigo publicado no jornal Valor Econômico em 16/10/2008.
A expressão que dá título a este artigo foi empregada recentemente por Joachim von Braun, diretor geral do International Food Policy Research Institute (IFPRI), de Washington (Responding to the World Food Crisis. Three Perspectives. IFPRI (2008). www.ifpri.org/pubs/books/ar2007/ar07e.pdf ). A celebração, hoje, do Dia Mundial da Alimentação realiza-se num ambiente em que os preços agrícolas conhecem não só aumentos espetaculares, mas uma volatilidade que põe a insegurança alimentar no centro da agenda internacional.
Desde 2000, as cotações internacionais do trigo, da manteiga e do leite triplicaram. As do milho dobraram. Arroz, carne, mandioca, óleos vegetais também passam por elevações extraordinárias. Josette Sheeran, diretora do Programa Alimentar Mundial, mostra, em artigo também publicado pelo IFPRI, que de 2002 a 2007 os custos de aquisição de seu programa aumentaram 50%. De 2007 para cá subiram outros 50%. Os estoques mundiais de trigo estão em seu nível mais baixo desde 1978. Ao final da safra 2008/2009, as reservas de milho devem ficar aquém do que eram em 1996. Nos últimos oito anos, houve sete em que o consumo de grãos superou a produção. Entre janeiro de 2007 e junho de 2008 nada menos que 50 países já conheceram protestos públicos motivados pela disparada dos preços alimentares. E agora, com as repercussões da crise financeira na economia global, há o forte risco de os agricultores venderem suas próximas safras com preços deprimidos. Não é apenas um novo patamar de preços, mas uma situação de imensa instabilidade.
Há dois elementos básicos que auxiliam a entender o que vai além das oscilações conjunturais na atual crise alimentar. O primeiro refere-se ao papel do mercado, das organizações privadas e do Estado na construção da segurança alimentar. No início dos anos 1980 a OCDE previa rápida ampliação das capacidades produtivas e apostava que, em pouco tempo, mais de trinta países abasteceriam o mercado mundial. Hoje as nações exportadoras não chegam a dez. As reformas das políticas agrícolas dos países desenvolvidos reduziramdrasticamente seus estoques.
É verdade que estes estoques contribuíam para desestabilizar os mercados mundiais. Prejudicavam países mais pobres e representavam altos custos para os contribuintes. O que a atual crise mostra, no entanto, é que os mecanismos de mercado são nitidamente insuficientes para garantir estabilidade na oferta. Jean-Marc Boussard, ex-presidente da Sociedade Francesa de Economia Rural, tem uma hipótese ousada para explicar o fenômeno (Boussard J.M. 1996. When risk generates chaos.J Econo Behav Organ, 29(96/05) : 433-46). Diante de uma demanda rígida e de uma oferta pulverizada, os preços agrícolas, ao sabor dos mercados, apresentam comportamento necessariamente caótico. Sem regulação estabilizadora é o próprio abastecimento da sociedade que se encontra sob risco. Não se trata de preconizar a volta aos mecanismos que marcaram as políticas agrícolas do século XX (preços de garantia, formação de imensos estoques governamentais, exportações subsidiadas, etc.). Mas nada indica que a liberalização dos mercados agrícolas coloque a população ao abrigo da instabilidade caótica nos preços.
O segundo elemento de natureza estrutural na crise alimentar refere-se à forma como as sociedades contemporâneas usam os recursos naturais para a produção agropecuária. Tudo indica que foram extintas as condições que permitiram o fornecimento da energia barata que marcou a expansão das safras no século XX. Os preços internacionais médios de fertilizantes fosfatados subiram de U$ 250 em 2007 para U$ 1.230 em julho de 2008. Os adubos à base de potássio aumentaram de U$ 172 para U$ 500 a tonelada no mesmo período. E a tonelada dos nitrogenados foi de U$ 277 a U$ 450.
Quanto à água, a agricultura responde por 70% de seu consumo mundial. Hoje há 500 milhões de pessoas vivendo em regiões de escassez crônica de água: em 2050 serão 4 bilhões. O próprio solo encontra-se ameaçado com 16% da superfície agrícola útil da Terra em estado de degradação.
Em abril deste ano foi realizado o International Assessment of Agricultural Knowledge, Science and Technology for Development (IAAKSTD). É um documento que resultou de ampla consulta, envolvendo 400 especialistas, com relatórios submetidos a rigoroso sistema de avaliação pelos pares (peer review), patrocinado por entidades como FAO, Banco Mundial, Unesco, Pnud e OMS, entre outros e assinado por 60 governos.
Os inegáveis progressos da produtividade agrícola que marcaram o século XX, diz o IAAKSTD, beneficiaram de maneira desigual o conjunto da população do planeta. Além disso, este aumento de produtividade teve um custo ambiental – em termos de solo, água, biodiversidade e mudança climática – incompatível com o crescimento populacional previsto até 2050. Até lá, as necessidades alimentares vão praticamente dobrar, sobretudo nos países em desenvolvimento.
A principal proposta para enfrentar este desafio crucial está no termo intensificação ecológica. O aumento dos rendimentos terá que ser compatível com a preservação dos ecossistemas. Mais que isso: não poderá apoiar-se na energia fóssil que acompanhou a produção de sementes de alta potencialidade durante a revolução verde. Interromper imediatamente a perda de biodiversidade a que conduziu o crescimento agrícola até aqui é indispensável.
A maneira de levar isso adiante, na prática não poderia ser mais polêmica. De um lado estão os que enxergam no uso de sementes transgênicas a única forma consistente de elevar os rendimentos do solo, sobretudo quando se trata de fazê-lo em ambientes ecologicamente frágeis. Daniel Nahom no recém lançado “L ́épuisement de la terre, l ́enjeu du XXIème Siècle” (Paris, Odile Jacob, 2008) defende este ponto de vista. Por outro, há os que acreditam que a intensificação ecológica passa pela diversificação crescente dos sistemas produtivos e pelo esforço crescente de melhorar a produção por meio da capacidade de imitar o que faz a própria natureza. Ainda é cedo para saber os caminhos pelos quais serão corrigidas as falhas de longo prazo no sistema alimentar mundial.
Ricardo Abramovay é professor titular do Departamento de Economia da FEA/USP, coordenador de seu Núcleo de Economia Socioambiental (NESSA) e pesquisador do CNPq