Novas fronteiras da agricultura familiar

Quem ainda imagina que agricultura familiar é uma organização social avessa ao risco, incapaz de inovação técnica e de pequeno porte por definição, não conhece um dos mais importantes fenômenos recentes da economia brasileira: a expansão do Oeste bahiano, que se estende, em grande medida, ao Piauí e ao Maranhão.

Artigo publicado no jornal Gazeta Mercantil – p. A 3 – 17/09/01

Quem ainda imagina que agricultura familiar é uma organização social avessa ao risco, incapaz de inovação técnica e de pequeno porte por definição, não conhece um dos mais importantes fenômenos recentes da economia brasileira: a expansão do Oeste bahiano, que se estende, em grande medida, ao Piauí e ao Maranhão. Em seu epicentro está o município de Barreiras, cuja população cresceu de 42 mil a 93 mil habitantes entre 1980 e 1991 e volta a aumentar nada menos que 45% durante a última década, chegando a 132 mil habitantes em 2000. O Oeste bahiano é hoje a área de maior produção agrícola do Nordeste, superando até a fruticultura dos perímetros irrigados do Vale do São Francisco. Mas é claro que esta pujança econômica não atinge, de maneira homogênea, todos os municípios da região. E um dos mais desafiadores enigmas no estudo dos processos de desenvolvimento está em conhecer a alquimia que resulta numa dinâmica localizada virtuosa, em contraste com situações mais ou menos paralisantes.

O sucesso de Barreiras não se apoiou, nem de longe, na oferta de recursos baratos a grupos empresariais. Alguns municípios próximos a Barreiras acolheram, durante os anos 1980, grandes empresas que, sobre a base de incentivos da SUDENE, implantaram dezenas de pivôs centrais para a produção de grãos e frutas e acabaram falindo, deixando um rastro de desânimo e paralisia. O móvel destes empreendimentos residia fundamentalmente na captura de dinheiro público barato. Eles se apoiavam na implantação de estabelecimentos onde a gestão e o trabalho estavam inteiramente separados. O risco era ínfimo e as relações sociais criadas no local reproduziam o ambiente tradicional de dominação já existente. O resultado deste tipo de iniciativa econômica é quase sempre uma sociedade local deprimida, onde os jovens não querem permanecer e cuja vida vai depender fundamentalmente das transferências governamentais de renda. Os próprios agentes públicos (governamentais ou não) responsáveis, em tese, pela animação do processo de desenvolvimento, restringem seu horizonte a projetos tímidos e transpiram, em seus depoimentos, a descrença com relação às chances de mudanças significativas e socialmente benéficas. São situações em que a junção e a coordenação dos atores econômicos em torno de um projeto torna-se quimera e onde a melhor estratégia de sobrevivência consiste em ir embora ou em manter o precário equilíbio existente.

Dizer que a especialização produtiva numa cultura de exportação (a soja) explica o sucesso econômico dos municípios mais prósperos do Oeste bahiano é contar apenas parte da história. É verdade que os territórios com parcelas significativas de cerrados foram os mais atraentes exatamente em virtude de seu potencial em grãos. Mas o dinamismo econômico da região nasce de uma associação virtuosa entre fatores variados que se reforçaram. O primeiro deles é que a fronteira agrícola do Oeste bahiano tem por protagonistas centrais agricultores familiares vindos, a partir do final dos anos 1970, do Sul do País. O tipo de colonização que caracterizou o Alto Uruguai (RS), o Oeste de

Santa Catarina, o Oeste e o Sudoeste do Paraná é o contrário do padrão historicamente dominante de ocupação de novas áreas no Brasil, baseado na grande propriedade e no uso de mão-de-obra escrava ou pessimamente remunerada. Nas colônias do Sul, gestão e trabalho andaram sempre juntos e não é por acaso que nestes locais os indicadores de desenvolvimento são, de longe, melhores que no restante do País.

A venda de 20 ou 30 hectares no Sul do País permitia adquirir extensões muitas vezes superiores a 800 hectares no início dos anos 1980. E era com a família que os agricultores transformavam a paisagem local e instalavam empreendimentos econômicos dinâmicos. Esta unidade entre inovação técnica e trabalho direto, familiar, é o fundamento de um novo ambiente institucional que se irradia por um conjunto variado de organizações. Ninguém ignora que a soja cria poucos postos de trabalho na própria agricultura. O que chama a atenção, no caso do Oeste bahiano, e especialmente de Barreiras, é a rápida multiplicação de atividades. Um estudo recente do IPEA e da SUDENE selecionou um conjunto de áreas de Nordeste chamadas de “novos sertões”: são microrregiões que se destacaram pelo crescimento, durante os anos 1990, dos depósitos bancários à vista, da produção agropecuária e dos rendimentos do trabalho assalariado registrado em carteira (excluídos daí os empregos públicos). Destas regiões dinâmicas, Barreiras é a única em que o trabalho assalariado formal, com carteira assinada, adquire uma proporção realmente significativa, tendo passado, de 6,7 mil empregos em 1995 a quase 9 mil em 1998. Neste total, a agricultura tem importância bem menor que a do comércio e dos serviços, o que é um forte indicador da capacidade de diversificação das ocupações econômicas trazidas por esta expansão produtiva.

Os agricultores familiares só puderam iniciar a ocupação dos cerrados pelo apoio recebido tanto da pesquisa pública (a EMBRAPA e a Empresa de Pesquisa Agropecuária da Bahia, EPABA) como de financiamentos bancários que, no início, faziam-se por iniciativa de um gerente do Banco do Brasil que emprestava aos agricultores à revelia da própria orientação de seus chefes que não se propunham a correr o risco da inovação. É claro que hoje, existem na região empresas com formas sociais muito variadas (atraídas exatamente por este ambiente dinâmico) e não apenas unidades familiares de produção. A produção diversificou-se e a prosperidade não está mais apenas na soja, nem na agricultura. Mas a coesão social deste grupo de origem explica um traço excepcional do Oeste bahiano: a organização associativa dos produtores, que resultou até numa agência não governamental de pesquisa agropecuária.

O entusiasmo que esta expansão desperta não pode escamotear dois problemas difíceis. O primeiro refere-se ao uso dos recursos naturais e, antes de tudo, à água, já que existem 600 pivôs centrais que respondem por 60 mil hectares de terras irrigadas. A instalação hoje de pivôs centrais submete-se, ao que tudo indica, a um sério controle que passa pelo IBAMA e por organizações locais. Mais importante, entretanto, são as iniciativas tomadas no âmbito do Farol do Desenvolvimento do Banco do Nordeste do Brasil. Trata- se de um fórum que procura reunir os atores locais para formular um projeto de desenvolvimento. A concepção do Farol do Desenvolvimento faz dele um dos poucos exemplos hoje no Brasil em que os atores locais organizam sua ação econômica sob influência da formulação de um projeto estratégico. É claro que o sucesso e a própria composição social do Farol vai variar imensamente segundo os municípios em que atua.Em Barreiras, os próprios produtores percebem a ameaça que a expansão das áreas irrigadas representa à sustentabilidade da agricultura e elaboram duas iniciativas importantes. Em primeiro lugar, a formação de corredores destinados à preservação da biodiversidade dos cerrados e, antes de tudo, à retenção da água que escorre das áreas com lavouras para sorvedouros que permitirão reabastecer o lençol freático. Além disso, estuda-se a formação de um parque nacional voltado à exploração do potencial turístico da região.

O segundo problema enfrentado por este padrão de crescimento econômico encontra-se em seus efeitos sobre o mercado de trabalho. Ao lado dos 9 mil empregos formais e de uma agricultura familiar muito próspera, existe um amplo conjunto de trabalhadores vivendo de baixos salários. A pobreza e a violência na periferia das pequenas e médias cidades se traduz no apelido (Iraque) do bairro periférico de um dos municípios mais prósperos do Oeste bahiano, Luiz Eduardo Magalhães. É claro que a população atraída para viver nestas periferias e trabalhar, por dia, no algodão, no café e, em menor escala nos grãos, encontra aí condições melhores das que existiam em seus locais de origem. Mas o que mostra a experiência do Oeste bahiano é que a prosperidade econômica num entorno miserável, mesmo que inicialmente apoiada no trabalho familiar, acaba reproduzindo um estrutura social polarizada e excludente. Não se pode dizer que a agricultura irrigada do Oeste bahiano é uma ilha de prosperidade num mar de miséria. Mas ela ainda não provou sua capacidade em promover formas de vida social que façam da grande maioria dos habitantes, mais do que mão-de-obra barata, os protagonistas do processo de desenvolvimento. E é por isso, que o dinamismo do Oeste bahiano é um dos mais expressivos retratos do Brasil.

Ricardo Abramovay é professor Titular do Departamento de Economia da FEA e presidente do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental da USP – abramov@usp.br

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