Procura-se a empresa do futuro

A “corporação 2020” tem que superar a definição de empresa privada moderna, na qual a responsabilidade de uma firma consiste apenas em propiciar lucros a seus acionistas.

http://www.valor.com.br/cultura/2943498/procura-se-empresa-do-futuro

É necessário redefinir os propósitos da vida econômica. E para que esta redefinição não seja puramente retórica, não pode se limitar às políticas públicas ou à maneira como são expostos os resultados da oferta de bens e serviços nos grandes agregados, como o produto interno bruto. Seu ponto de partida tem que ser a mais importante instituição das sociedades contemporâneas, que responde por quase dois terços da criação de riqueza e quase três quartos da ocupação de mão de obra: a empresa. O problema é que a consolidação da empresa moderna traz um vício de origem, que se exprime, juridicamente, na ideia de que a responsabilidade de uma firma consiste em propiciar lucros a seus acionistas, não lhe cabendo, portanto, qualquer atribuição quanto ao enfrentamento de problemas sociais ou ambientais além do que lhe impõem as leis.

É essa definição de empresa privada que a “corporação 2020” tem que superar. Muito mais que responsabilidade socioambiental corporativa, o que está em jogo é a contribuição do setor privado para a redução das desigualdades, melhoria na qualidade de vida e, sobretudo, respeito aos limites dos ecossistemas. O ano de 2020 é o emblema da necessária superação do que ocorreu de forma predominante no século passado. Mas exprime também a urgência de um conjunto de transformações, que não poderão ser nem graduais, nem derivar endogenamente de incentivos bem desenhados e oferecidos ao mundo corporativo.

Pavan Sukhdev é biólogo, teve uma carreira de destaque no Deutsche Bank e, a partir de 2008, dirigiu para as Nações Unidas a elaboração do que hoje ficou conhecido pela sigla TEEB, “The Economics of Ecossystems and Biodiversity”, um conjunto de relatórios sobre a importância e o valor da biodiversidade para a sociedade e as empresas. A grande virtude de seu novo livro é que ele se distancia da visão complacente e apologética de que a resposta empresarial aos grandes desafios socioambientais de nosso tempo é sempre ganha-ganha. Ele reconhece, é claro, a conquista de riqueza, a melhoria da formação dos trabalhadores e a própria ampliação dos horizontes de circulação dos bens, dos serviços e das pessoas, como resultados do funcionamento das empresas modernas. Mas o traço central das atividades corporativas dominantes a partir de 1920 (em oposição ao que deve ocorrer com a “corporação 2020”) é a obtenção de ganhos cada vez mais apoiados em perdas, tanto para os ecossistemas como para o próprio mundo social.

A demonstração de sua tese parte de uma história das corporações em que se destaca a existência do equivalente à sociedade por ações na Índia, dois séculos antes de nossa era e do comércio de ações na Roma Antiga. Mas as empresas antigas, bem como as do período europeu medieval, foram sempre dependentes dos Estados. É só a partir do século XIX que se implanta a responsabilidade limitada. É nítida a ambiguidade dos resultados dessa implantação. Por um lado, há a possibilidade inédita de ampliar de forma autônoma a produção de bens e serviços. Ao mesmo tempo, porém, a empresa torna-se livre com relação a valores e finalidades que não se relacionem imediatamente à obtenção de ganhos econômicos.

Essa é a marca dominante do tipo de empresa que passa a dominar o mundo no século XX. Crescimento a qualquer custo, influência sobre políticas governamentais, propaganda voltada exclusivamente a ampliar os mercados e alavancagem financeira para promover o crescimento, esses traços da “corporação 1920” dominam o mundo dos negócios até hoje e seus danos são documentados de forma rica e convincente no livro.

O trabalho torna-se ainda mais interessante quando procura discutir o conteúdo do DNA da “corporação 2020” e os caminhos da mutação para comportamentos diferentes dos atuais. As quatro metas dessa mutação comportamental são relativamente evidentes (mas nem por isso de fácil execução): em primeiro lugar, trata-se de fazer o que a empresa de artigos esportivos Puma realizou no ano passado: promover estudos para conhecer e revelar publicamente as externalidades de cada firma. Jochem Zeitz, CEO da empresa, lançou um movimento empresarial para a revelação dos lucros e perdas ambientais (EP&L na sigla em inglês). Os lucros da Puma em 2010 (€ 220 milhões) têm como contrapartida custos ambientais não pagos por sua cadeia de valor que sobem a nada menos que € 145 milhões. O conteúdo da segunda meta é particularmente desafiador para países produtores de bens primários: taxar os recursos escassos de que depende a produção material. A terceira meta é acabar com a irresponsabilidade no mundo da propaganda. A quarta refere-se à alavancagem financeira e à importância das empresas grandes demais para falir.

Nos dois últimos capítulos do livro, Sukhdev contesta alguns dos mais importantes lugares-comuns da literatura sobre mudanças de comportamentos empresariais. É ilusória a perspectiva de que as empresas mudarão à medida que isso for bom para elas: o ritmo desse tipo de transformação está muito aquém das exigências atuais. Além disso, não há fórmulas mágicas para exprimir a mudança, como poderiam ser, por exemplo, a consciência do consumidor ou a transparência.

Se é assim, como pode surgir este novo DNA no mundo dos negócios? É curioso que, ao chegar a este ponto, o raciocínio de Sukhdev torna-se normativo, ou seja, exprime o que a empresa deveria ser e não as bases sociais, culturais e comportamentais que poderiam conduzir a mudanças no que fazem seus gestores. O livro oferece exemplos e entrevistas com líderes, mas está muito longe, ainda, de apresentar algo que se assemelhe a uma visão teoricamente robusta desse processo de mudança. Longe de exprimir deficiência no trabalho de Sukhdev, esse é o próprio estado da arte em que se encontra o desafio de compatibilizar os incentivos e os modelos mentais a partir dos quais funciona a empresa privada com a urgente necessidade de que ela se volte de forma explícita e voluntária a promover o bem-estar e o respeito aos limites dos ecossistemas.

“Corporation 2020”, Pavan Sukhdev. Editora: Island Press. 320 págs., R$ 104,30

Ricardo Abramovay é professor do departamento de economia da FEA/USP

Artigo publicado em 18 de dezembro de 2012 no jornal Valor Econômico, disponível em: http://www.valor.com.br/cultura/2943498/procura-se-empresa-do-futuro

 

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