Oposições à empresa verde

A idéia de que o mundo empresarial possa ser, voluntariamente, um ator decisivo na construção de modelos produtivos ambientalmente sustentáveis encontra duas oposições básicas.

Artigo publicado no jornal Valor Econômico em 30/11/2007.

A idéia de que o mundo empresarial possa ser, voluntariamente, um ator decisivo na construção de modelos produtivos ambientalmente sustentáveis encontra duas oposições básicas. A primeira é extremamente salutar e consiste num conjunto de peso de denúncias contra certa hipocrisia verdejante que não passa de propaganda mentirosa. John Kenney, publicitário americano responsável pela campanha que transformou a segunda maior empresa petrolífera do mundo de British Petroleum em Beyond Petroleum (Além do Petróleo) manifestou no “New York Times” (www.nytimes.com/2006/08/14/opinion/14kenney.html) sua profunda decepção: “Acho que Beyond Petroleum, diz ele, é só propaganda.”

Vai na mesma direção o texto da “Business Week”, traduzida pelo Valor na edição do dia 18 (“Empresa verde é quase sempre um mito”), contando a trajetória do americano Auden Schendler, que, na sua missão de executivo ambientalista, alerta: “A idéia de que atitudes ecológicas são divertidas, fáceis e baratas é perigosa. Ser verde implica trabalho duro. A coisa toda é complexa. Nem sempre lucrativa. E as companhias precisam inaugurar o placar e passar efetivamente a fazer algo.”

Mas há outro tipo de crítica ao envolvimento das empresas com temas socioambientais: dizer que a obrigação de uma companhia privada é produzir lucro para seus acionistas e qualquer desvio dessas finalidades tem duas conseqüências negativas. A primeira é para os acionistas, cujas remunerações são ameaçadas por demagógica dispersão de esforços. A segunda é para a sociedade: quando a empresa se consagra a assuntos que não se limitam à obtenção do lucro nos limites da lei, claro, há distorção na própria capacidade de o mercado distribuir os recursos produtivos demaneira racional e equilibrada.

Esse ponto de vista foi defendido pelo Prêmio Nobel de Economia Friedrich von Hayek num célebre texto de 1945, “O uso do conhecimento na sociedade”. Não interessa para um indivíduo ou uma empresa por que razão o mercado precisa de certo tipo de parafuso ou por que o consumidor prefere saquinhos de papel ou de plástico: a única coisa importante é saber o que o mercado pede, em que quantidade e sob que condições de preço. Se cada empresa se concentrar seriamente em buscar resposta a essas difíceis perguntas, se o Estado garantir o cumprimento das leis e se houver liberdade para os mercados funcionarem, é provável que os recursos econômicos sejam mais bem utilizados do que se alguém tentar planejar (em nome, por exemplo, de razões sociais ou ambientais) o que fazer com esses recursos. “Num sistema em que o conhecimento dos fatos relevantes está disperso entre muitas pessoas, os preços podem agir para coordenar suas ações separadas.”

Uma interessante versão contemporânea desse ponto de vista pode ser encontrada no trabalho de David Henderson, “The Role of Business in the Modern World: Progress, Pressures and Prospects for the Market Economy”, publicado neste ano pelo Institute of Economic Affairs da Austrália: empresas são veículos de inovação e não têm de se preocupar com temas de interesse público. O lucro é o indicador da contribuição da empresa para o bem-estar social e, por isso, a idéia de responsabilidade social corporativa vai trazer mais danos que benefícios.

Não é difícil salpicar nessas idéias temperos que se encontrem à esquerda do menu político: a empresa capitalista visa ao lucro e a única maneira de coibir sua sanha exploradora e de devastação é pela ação do Estado (ou, não se sabe muito bem quando, pela revolução). Que o argumento tenha inspiração liberal ou de esquerda, o importante é a noção de que a empresa, o mercado e, em última análise, a economia exprimem uma esfera autônoma da vida social que funciona tanto melhor quanto menos receber a intervenção consciente, deliberada, voluntária da sociedade.

A empresa capitalista lembra a figura de Boule de Suif, de Guy de Maupassant – popularizada entre nós pela Geni de Chico Buarque -, cuja verdadeira natureza já é conhecida e dada de uma vez por todas e cuja transformação eventual só pode ser superficial e enganosa. A crítica à própria possibilidade de as empresas responderem a exigências socioambientais, que estejam além daquilo que impõe a legislação, se apóia, em última análise, na idéia de que, no capitalismo, a economia funciona por estar, de alguma maneira, separada da sociedade, livre de suas pressões. E, quando a sociedade resolve manifestar-se na esfera econômica, na vida das empresas e no funcionamento dos mercados, o resultado só pode ser demagogia (versão à esquerda) ou má alocação dos recursos (versão liberal).

A pressão social por justiça, eqüidade e sustentabilidade deve manifestar-se na esfera pública, do Estado, e jamais na esfera privada da vida empresarial. Ao mercado o que é do mercado. À sociedade e ao Estado o que lhes pertence.

É justamente com esse ponto de vista que tanto os mais importantes movimentos sociais contemporâneos como destacadas organizações empresariais estão rompendo. Dois exemplos recentes ilustram bem essa nova forma de expressão social. O Fórum Amazônia Sustentável reuniu, entre os dias 5 e 7, organizações não governamentais como o Instituto Socioambiental, o Projeto Saúde e Alegria, Imazon, Amigos da Terra, movimentos sociais do porte do Conselho Nacional dos Seringueiros, com Vale do Rio Doce, Petrobras, Alcoa, Philips, ABN e Bancos Itaú e da Amazônia.

Como bem destaca Maurício Hashizume, do “Repórter Brasil” (13/11/07), a reunião de um conjunto tão diversificado de atores é inédita e mostra a ambição de organizações da sociedade civil de interferir na maneira como o mundo empresarial decide a alocação de seus recursos. São passos iniciais cujo sucesso não está garantido. Mas, caso se considere a empresa privada como a fortaleza inexpugnável da racionalidade econômica à qual a vida social não tem acesso, esses passos não serão sequer tentados. Ou, nas palavras de Magnólio Oliveira, vice-coordenador do Projeto Saúde Alegria: “Os povos da floresta não são ingênuos e estariam fora desse barco se a proposta de articulação com grandes empresas não trouxesse a possibilidade concreta de melhorias nas condições de vida.”

O segundo exemplo vem da Global Reporting Initiative, organização empresarial que incentiva as empresas a mudar a apresentação dos balanços, neles incorporando temas que a visão convencional considera não pertencer ao âmbito e às competências das companhias privadas. Como explica Bob Massey, um de seus criadores: “Nossa idéia do que é criar riqueza é, infelizmente, primitiva e sem sofisticação.” Incorporar variáveis socioambientais é o caminho para uma expressão social mais inteligente daquilo que fazem as empresas.

Borram-se as fronteiras que a idade moderna ilusoriamente procurou erguer, separando a economia da sociedade. Com isso, a própria vida política se enriquece, entrando em searas que há até bem pouco tempo pareciam não lhe dizer respeito. Que o diga a ousadia dos povos da floresta na Amazônia.

Ricardo Abramovay é professor titular do Departamento de Economia da FEA e pesquisador do CNPq.

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