O mito do veneno que salva

O notável avanço das fontes menos sujas (gás) e renováveis (eólica e solar) de energia pode tornar-se uma gota d’água no oceano fóssil

O capítulo 2 de Muito Além da Economia Verde aborda o chamado “pico do petróleo”. A expressão é usada para indicar o esgotamento das fontes mais abundantes deste recurso e a dificuldade cada vez maior em se extrair o produto do solo. Desde o segundo semestre de 2012, o ambiente intelectual com relação a este tema mudou muito. Por um lado, vários estudos insistem na ideia de que os recursos minerais do Planeta conhecem inédita volatilidade de preços, graças à insegurança de sua capacidade de suprirem a demanda crescente. Por outro lado, porém, novas tecnologias permitem a exploração de petróleo (e gás) em áreas até aqui pouco acessíveis: é o caso do gás de xisto na América do Norte, pré-sal brasileiro e das plataformas que se instalalam no Ártico. Só que os custos de exploração destes recursos vão aumentando: não só os custos econômicos, mas também os riscos de sua exploração. Este artigo traz uma boa notícia: o notável avanço das fontes menos sujas (gás) e renováveis (eólica e solar) de energia. Mas isso pode tornar-se uma gota d’água no oceano fóssil, como bem o mostra o relatório do Greenpeace.

Artigo publicado em 5/02/2013 em: http://www1.folha.uol.com.br/empreendedorsocial/colunas/1225858-o-mito-do-veneno-que-salva.shtml

É difícil encontrar problema contemporâneo mais importante que o resultante dos 14 maiores projetos de exploração de carvão, petróleo e gás pelo mundo afora. Por um lado, cada um deles representa uma bênção a seus países de origem, oferecendo horizonte palpável de solução para a dependência energética (caso dos EUA), para a pobreza (caso da China) ou para a educação (caso do Brasil).

Mas, quando se somam essas iniciativas, a bênção se converte em maldição: estudo recente divulgado pelo Greenpeace ] mostra que a queima adicional de combustíveis fósseis decorrente apenas dessas 14 niciativas vai lançar na atmosfera, em 2020, o correspondente a tudo o que os EUA emitem hoje em gases de efeito estufa.

Como a exploração de combustíveis fósseis exige pesada estrutura de instalação e de distribuição (minas, poços, oleodutos, gasodutos, postos de gasolina), isso significa que esses 14 projetos colocam a humanidade num “ponto de não retorno” (título do trabalho do Greenpeace) com relação às mudanças climáticas.

A dimensão física do sistema de energia baseado em fósseis já é gigantesca. Ela se amplia a cada investimento adicional em carvão, petróleo e gás. Entre 2000 e 2008, por exemplo, a China investiu nada menos de US$ 300 bilhões em novas minas de carvão. A amortização desses investimentos só vai acontecer entre 2030 e 2040. Essas instalações continuarão funcionando até 2060, segundo um importante relatório das Nações Unidas. Investimentos em fósseis têm um impacto sobre a vida social que se prolonga por décadas.

O resultado é aterrador: seis graus de elevação da temperatura global média até o final do século. É bom lembrar a convergência crescente entre os governos, as organizações multilaterais, a sociedade civil, o número crescente de empresas e a esmagadora maioria da comunidade científica de que o aquecimento derivado da emissão de gases de efeito estufa não deveria ir além de dois graus. O rumo atual é três vezes superior ao limite mencionado quase exaustivamente em conferências e documentos internacionais.

É verdade que novas tecnologias permitem obter combustíveis fósseis cuja exploração até recentemente era inviável: é o caso do gás de xisto e do pré-sal. Não é menos certo que essa exploração pode trazer benefícios econômicos, sociais e até geopolíticos fundamentais. É possível até que as ameaças ambientais desses projetos não sejam tão grandes quanto o habitualmente alardeado. Na maior parte dos casos, eles são acompanhados de promessas relativas à captação e à armazenagem de carbono ou à garantia de que os conhecimentos atuais impedirão que se repitam tragédias como a que atingiu o Golfo do México em 2010.

Nada disso, entretanto, elimina o mais importante e que, sobretudo no caso pré-sal brasileiro, não tem ocupado lugar devido no debate público: aumentar nessa proporção o uso de combustíveis fósseis coloca o conjunto da sociedade numa rota cujos perigos são apenas prenunciados pelo furacão Sandy, pelos incêndios florestais na Rússia, em 2010, ou pelo ciclone que chegou a Santa Catarina poucos anos atrás.

No mundo todo, crescem os investimentos em energias renováveis e em tecnologias explicitamente voltadas a reduzir as emissões de gases de efeito estufa. Alguns dias após a divulgação do relatório do Greenpeace, a Bloomberg e o Business Council for Sustainable Energy] publicaram um estudo que mostra o declínio das fontes tradicionais de energia nos Estados Unidos e uma elevação muito expressiva da participação do gás (que é fóssil, mas não tão sujo quanto o carvão e o petróleo) e de renováveis na matriz energética do país.

O trabalho enfatiza também os ganhos de eficiência no uso da energia por parte da indústria e dos domicílios. Um avanço certamente fundamental que justifica a afirmação: “Uma revolução está transformando a maneira como os americanos produzem, consomem e pensam sobre energia”. Esse avanço, entretanto, corre o risco de ser ofuscado pelo estrago advindo da oferta adicional de combustíveis fósseis em diferentes países, mencionados e quantificados no trabalho do Greenpeace.

Em vez simplesmente de surfar na onda do atraso representada por esses investimentos, o Brasil teria muito mais a ganhar caso consolidasse sua matriz energética menos dependente de fósseis que o resto do mundo, mas, ao mesmo tempo, se liderasse uma discussão global cujo ponto de partida só pode ser a pergunta: qual a quantidade de gases de efeito estufa que a economia mundial ainda pode emitir para que haja chance de não ultrapassar o limite de dois graus?

Em 2012, a Agência Internacional de Energia respondeu a essa pergunta com toda a clareza em seu World Energy Outlook] : se a civilização tiver prioridade diante da renda dos combustíveis fósseis, não mais que 30% das reservas hoje conhecidas poderão ser exploradas.

O problema é que a viabilidade econômica desaas explorações é incompatível com esse limite. Além disso, como a decisão referente a esses investimentos não é tomada levando em conta seus efeitos globais, cada país, cada empresa dá as costas aos evidentes impactos destrutivos desses projetos e age como se a oferta de combustíveis fósseis e o aquecimento global fossem dois temas independentes um do outro.

Não é sensato que o caminho para a redenção social, para a independência energética ou para qualquer outro objetivo relevante tenha como contrapartida a tão grande ampliação dos riscos a que a miopia dos governos e a ambição das empresas petrolíferas estão expondo a espécie humana.

RICARDO ABRAMOVAY, professor titular da FEA e do IRI/USP, pesquisador do CNPq e da Fapesp, é autor de “Muito Além da Economia Verde”, ed. Planeta Sustentável.

twitter@abramovay

e-mailabramov@usp.br

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Ricardo Abramovay
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11 anos atrás

Comentário do colega Ignacy Sachs recebido por email:

Caro Ricardo,

Acabo de ler o seu importante artigo. A conclusão a que cheguei é que não deveríamos tardar na elaboração de um plano mundial de produção e consumo de energia capaz de atender às necessidades de todos os que estão na base da pirâmide social mundial.

Os temas a serem tratados:
a) minimizar os impactos negativos sobre o meio ambiente através de uma escolha apropriada das fontes de energia e das técnicas de produção, substituindo sempre que possível as energias fósseis por energias renováveis (questão em aberto: queremos ou não nos aventurar na energia nuclear?);
b) ao mesmo tempo, limitar o consumo perdulário da energia por parte das elites privilegiadas e os desperdícios que ocorrem ao longo de toda a cadeia de produção, distribuição e consumo.

Mais fácil de dizer do que fazer. De qualquer maneira, não podemos mais nos omitir da discussão de quotas de energia fóssil per capita a serem respeitadas para não precipitar catástrofes ambientais de consequências graves.

Quem poderia assumir a responsável e, por certo, difícil tarefa de equacionar este tema?

Seremos amanhã 9 bilhões. De quanta energia per capita necessitaríamos, ao postular níveis de vida e conforto razoáveis para todos e portanto convergentes, levando em conta as diferenças climáticas e os desníveis atuais de desenvolvimento socioeconômico?

Minha hipôtese de trabalho: sim, ainda podemos desenhar estratégias viáveis, à condição de não nos omitirmos da discussão dos limites ao consumo de energias fósseis a serem impostos aos grandes consumidores. As grandes questões a serem estudadas:
– Qual a margem de manobra para reduzir o perfil da demanda energética por unidade de consumo final através do progresso técnico e da diminuição das distâncias a serem percorridas entre o lugar de produção e de consumo?
– Quais as barreiras para aumentar significativamente a eficiência no uso das energias fósseis (veja o livro de Robert e Edward Ayres, Crossing the Energy Divide: Moving from Fossil Fuel Dependence to a Clean-Energy Future, Prentice Hall, 2009)
– Qual o potencial de substituição das energias fósseis por energias renováveis?
– Qual o futuro para a energia solar, levando em conta os progressos técnicos rápidos em curso (cf. Robert Ayres)?
– Qual atitude frente à energia nuclear?

Obviamente, a resposta a estas perguntas implica sermos capazes de pensar o longo prazo e traduzí-lo em planos plurianuais de desenvolvimento a serem elaborados simultaneamente a nível dos Estados-Nações e das grandes regiões, esta última tarefa a cargo das comissões regionais da ONU.

Saudações cordiais e até breve,
Inácio

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