O antropoceno e os limites da Terra

É urgente definir os limites planetários dentro dos quais a prosperidade pode manter-se e ampliar-se

Artigo publicado em 05/03/2013 no jornal Valor Econômico, disponível em: http://www.valor.com.br/cultura/3031108/o-antropoceno-e-os-limites-da-terra#ixzz2MfyQAZZn

Apesar de seu sabor levemente metafísico, a expressão busca humana refere-se a algo que não poderia ser mais concreto: o grande desafio da espécie humana é impedir a supressão das condições biogeofísicas que deram base à civilização, tal como a conhecemos. O período interglacial extraordinariamente estável que marcou os últimos dez mil anos é o único estado planetário capaz de oferecer apoio à vida social. É verdade que a existência do homem na Terra vem de muito antes, algo entre cem e duzentos mil anos. Mas foi somente com a amenidade e a estabilidade do clima nos últimos dez mil anos, que a Revolução Neolítica e a fantástica diversificação cultural e material que a ela se seguiu tornaram-se possíveis. Durante estes cem séculos, as variações médias de temperatura nunca foram superiores a um grau.

O problema é que de 1960 para cá o aumento da temperatura global média já chegou a 0,8 grau. Este registro climático é acompanhado da degradação em outras áreas cruciais do Sistema-Terra: nove mil espécies de plantas e dez mil espécies animais encontram-se ameaçados e o ritmo de extinção das espécies é hoje cem vezes superior a sua taxa natural. Nada menos que 40% da superfície terrestre é ocupada com atividades agropecuárias. O volume do gelo marítimo no Ártico foi dividido por cinco desde 1979.

Estas são apenas algumas evidências que permitiram às mais importantes sociedades científicas da área falar em uma nova era geológica, o Antropoceno. Seu traço central é que a humanidade tornou-se a principal força de mudança geológica do Planeta. Os efeitos de suas ações são mais ameaçadores que os originários de asteroides, erupções vulcânicas ou movimentos de placas tectônicas. A capacidade de o Planeta continuar assimilando e atenuando os impactos vindos da pressão humana está dando visíveis sinais de esgotamento.

A junção entre ciência e arte, resultante da co-autoria de Johan Rockstrom, autor de mais de cem artigos em revistas do calibre de Science e Nature e do fotógrafo Mattias Klum não é casual: o texto e as impressionantes fotos deste livro insistem na urgência de se preservar a própria beleza do meio que permitiu o florescimento da vida social. Mais que isso, porém, o trabalho traz duas inovações decisivas na discussão sobre desenvolvimento sustentável.

A primeira foi apresentada na Rio+20 e em artigos recentes do grupo liderado por Rockstrom: é difícil imaginar tarefa científica mais urgente que a definição dos limites planetários dentro dos quais a prosperidade pode manter-se e ampliar-se. Rockstrom recupera e valoriza o trabalho do casal Meadows e do Clube de Roma (Limites ao Crescimento), mas introduz uma questão nova: qual o espaço seguro de operação cuja ultrapassagem impede que o Planeta continue oferecendo os serviços ecossistêmicos que, até aqui, têm permitido o processo de desenvolvimento? A resposta está na delimitação de nove fronteiras planetárias, das quais o livro oferece métricas.

A obra mostra, inicialmente, onde devem situar-se estes limites para as mudanças climáticas, a depleção da camada estratosférica de ozônio e a acidificação dos oceanos. Em seguida, expõe outros quatro processos e define seus limites: perda de biodiversidade, uso de água fresca, mudanças no uso da terra e ciclos do nitrogênio e do fósforo. A particularidade destas dimensões é que diferentemente das três anteriores elas se exprimem de maneira fundamentalmente local, embora tenham, é claro, causas e consequências globais. As duas últimas fronteiras (materiais particulados ou aerossóis e poluição química) são produtos que emergem do sistema econômico e que possuem tal diversidade que não é fácil estabelecer seus limites de operação segura de maneira sintética.

O exame destas nove fronteiras à luz do crescimento populacional, da expansão do consumo e do aumento das desigualdades não permite imaginar que as mudanças globais anunciadas pelo antropoceno serão graduais ou que, uma vez manifestados seus efeitos, seja facilmente possível revertê-los interferindo em suas causas. Uma das mais importantes contribuições científicas do Centro de Pesquisa dirigido por Rockstrom está na palavra central que lhe dá o nome: Stockholm Resilience Center. Resiliência não é equilíbrio ou crescimento constante e sim a capacidade de um sistema (um indivíduo, uma floresta, uma cidade ou uma economia) lidar com a mudança incremental ou abrupta e prosseguir em seu desenvolvimento. E junto à ideia de resiliência, vem a noção decisiva de surpresa: as pesquisas levadas adiante pelo Stockholm Resilience Center mostram que os sistemas, longe de mudarem de forma contínua e gradativa, conhecem mudanças bruscas, inesperadas e muitas vezes irreversíveis. Um dos autores citados no livro resume a essência da noção de surpresa: “noventa e nove por cento da mudança nos ecossistemas parecem acontecer como resultado de apenas um por cento dos eventos que afetam o sistema”.

É sobre esta base que Rockstrom critica a própria maneira como o desenvolvimento sustentável tem sido definido habitualmente nos documentos internacionais. O objetivo não pode ser o de continuar fazendo o que se fez até aqui, procurando, porém, “reduzir impactos”. Por um lado, é necessário colocar a relação entre sociedade e natureza no centro das próprias decisões econômicas. Por outro lado, porém, é fundamental ampliar nossa capacidade de lidar com a surpresa. E isso só se obtém pelo fortalecimento da resiliência que pode ser também definida como a capacidade de um sistema absorver os distúrbios que o atingem, mantendo suas funções básicas. A variedade dos atuais sistemas socioecológicos é uma das premissas para que aumente nosso poder de lidar com a surpresa. E é exatamente esta diversidade que está sob ameaça.

Estamos vivendo na primeira metade da mais decisiva década da história humana. Não que o mundo vá acabar em 2020: mas o risco de mudanças abruptas, irreversíveis e potencialmente catastróficas aumenta muito, se continuarmos na trajetória atual.”The Human Quest”

iBook. Stockholm Text Publishing. 314 págs., US$ 9,99

Ricardo Abramovay é autor de “Muito Além da Economia Verde” (Planeta Sustentável/Abril) e professor titular da FEA e do IRI/USP. Twitter: @abramovay

http://www.valor.com.br/cultura/3031108/o-antropoceno-e-os-limites-da-terra#ixzz2MfyQAZZn

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Hugo Penteado
11 anos atrás

Abramovay,

Imagine a seguinte situação. O médico e cientista Albert Sabin teria sido ignorado pelos seus pares após suas descobertas. Na sua época, a busca de Sabin era ajudar os outros e salvar vidas e foi com as suas vacinas que ele conseguiu essa proeza e, acima de tudo, ele não foi ignorado pelos seus pares. Sabin e Nicholas Georgescu-Roegen foram contemporâneos, nasceram no mesmo ano, 1906, e Roegen morreu um ano depois de Sabin em 1994. Georgescu não teve a sorte de ter o respeito dos seus pares. Embora tenha descoberto os erros epistemológicos da teoria econômica tradicional e tenha construído uma análise irrefutável das consequências desses erros, ele foi ignorado pelos seus pares. Grosseiramente falando, os economistas através de princípios de conservação e axiomas importados da mecânica clássica para construírem seu corpo teórico baseiam sua análise e algumas conclusões completamente absurdas: 1) o sistema econômico é neutro para a natureza, 2) a natureza é inesgotável, 3) o planeta é um subsistema da Terra e 4) a economia pode ser maior que o planeta. Qualquer criança de cinco anos, se bem explicado, entenderá o quão absurdas são essas afirmações, tão fortes a ponto de nenhum economista ter preocupação com estoques, como por exemplo, quantas casas e carros existem na Terra, quantos aparelhos, baterias, televisores e computadores são adicionados, etc. Em relação à população, o crescimento percentual é mais importante que seu número absoluto. Se a natureza e o planeta são inesgotáveis, porque devemos nos preocupar com estoques? Basta olharmos os fluxos. O PIB é um fluxo que mesmo em recessão, quando o volume de produtos adicionados cai entre um ano e outro, a pressão sobre a natureza continua sendo observada. Os economistas seguem o mantra do crescimento econômico eterno, exponencial, como se não houvesse nenhum limite para o sistema econômico em eterna expansão e com essas idéias estapafúrdias conseguiram criar uma rota de colisão da humanidade e suas estruturas com as bases naturais de sustentação de toda a vida desse planeta. Georgescu, a certo ponto, avisou: “se o modelo de crescimento baseado em consumo continuar, seremos capazes de entregar a Terra ainda banhada em sol apenas à vida bacteriana”. Stephen Jay Gould disse o mesmo: a humanidade não é capaz de sequer fazer mossa à vida bacteriana. O custo de não ter dado ouvidos as descobertas de Georgescu nos anos 1970 são ingentes: não há mais tempo para reverter o processo de desagregação dos vários serviços ecológicos, como clima, polinização, sem os quais não haverá vida na Terra. Agora só conseguiremos mitigá-los e contar com a sorte de não enfrentar pontos de ruptura ou “não retorno”. Nenhum economista reconhece isso bravamente, nem tenta trazer de novo a discussão de uma forma que fique claro a imoralidade de não ir avante com as descobertas do Georgescu. Ao contráro, os mantras da economia tradicional continuam mais fortes do que nunca.
Abraço

Hugo

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