Entre a intenção e o gesto

O protecionismo agrícola da União Européia é um tema bastante árido e não se pode ter segurança que, fora do estreito círculo dos economistas agrícolas, os próprios europeus tenham uma idéia muito clara dos rumos que estão tomando as políticas voltadas a este setor.

Artigo publicado no jornal Gazeta Mercantil do dia 25/04 de 2000, página A3

O protecionismo agrícola da União Européia é um tema bastante árido e não se pode ter segurança que, fora do estreito círculo dos economistas agrícolas, os próprios europeus tenham uma idéia muito clara dos rumos que estão tomando as políticas voltadas a este setor. No final do mês passado, durante visita ao Brasil, o comissário europeu Pascal Lamy queixou-se de maneira contundente da falta de informação da opinião especializada brasileira quanto aos supostos avanços na contribuição da União Européia para a liberação do comércio agropecuário mundial. Lamy alegou uma questão de fato e defendeu um conceito, um princípio de organização social – de civilização – ao falar sobre a relação entre a agricultura européia e o comércio mundial.

O conceito defendido por Pascal Lamy resume-se na frase de efeito: “Não vamos transformar nossos agricultores em mineiros”. A agricultura não é considerada um setor econômico como outro qualquer. Em que se apoia este princípio ? Fundamentalmente na idéia de que além de produzir artigos cujos preços e quantidades poderiam (embora de maneira imperfeita) ser regulados pelo mercado, os agricultores respondem pelo estado da paisagem, da biodiversidade, dos recursos naturais e pelo próprio tecido social do meio rural. A estes bens a sociedade atribui um valor cuja expressão mercantil é necessariamente defeituosa e cuja oferta supõe, portanto, algum tipo de regulação pública (seja ela estatal ou não). O princípio de civilização a partir do qual o meio rural representa um conjunto de valores cada vez mais importante para as sociedades contemporâneas é dificilmente contestável. Não pode ser reduzido a uma idiossincracia oportunista dos diplomatas europeus.

Mas além desta defesa conceitual das políticas européias, Pascal Lamy evocou questões de fato. E aí é que se mostra um verdadeiro fosso entre as práticas protecionistas da Comissão européia (cujo respaldo junto à opinião pública do Continente é hoje francamente minoritário) e o discurso que valoriza as múltiplas funções que o desenvolvimento rural pode representar para a construção de uma sociedade mais equilibrada. De fato, a partir da reforma de 1992 – que representa uma virada decisiva em sua política agrícola – os europeus baixaram os preços internos de sustentação de seus produtos, mesmo daqueles que mais competem com os brasileiros, como as carnes e os grãos.

Só que esta queda nos preços foi compensada por uma outra forma de subvenção: o agricultor comprometia-se em colocar em repouso parte de sua área plantada, aceitava a redução nos preços estatais de garantia e, em contrapartida, recebia de Bruxelas um cheque proporcional ao conjunto de sua superfície ou ao número de animais que possuía. É verdade então que os preços caíram: mas o que saiu por um bolso dos agricultores (os preços de garantia) entrou pelo outro (o cheque que passaram a receber pelo relevante serviço prestado à sociedade que consiste em não produzir). Os defensores desta mudança na forma

de sustentação à agricultura alegam que ela traz duas vantagens importantes sobre a modalidade convencional que consiste na garantia estatal das cotações. Por um lado, ela é mais transparente, já que a sociedade sabe exatamente quanto cada agricultor recebe dos cofres públicos. Se este argumento é verossímel, o segundo já é bem menos aceitável: as ajudas diretas não distorcem o mercado, uma vez que o Estado não intervém no preços nem dos fatores, nem dos produtos. Só que o Estado acaba por garantir a própria rentabilidade dos negócios agrícolas. A tal ponto que mesmo se caíssem as barreiras tarifárias e as cotas, a simples existência dos pagamentos diretos representaria uma distorção nos mecanismos concorrenciais.

O valor agregado produzido pela agricultura francesa em 1996 foi de US$ 25 bilhões. Deste total, nada menos que US$ 11,6 bilhões (46%) vieram diretamente de transferências públicas feitas pelo Tesouro Nacional ou por Bruxelas. É importante salientar que este cálculo não toma em consideração as barreiras tarifárias que acabam protegendo a produção interior, nem o que os agricultores recebem do sistema previdenciário (aposentadoria, por exemplo): trata-se apenas daquilo que sai do Tesouro e vai para o bolso do agricultor, como compensação à queda dos preços de garantia. Neste mesmo ano, o valor agregado pela agricultura brasileira foi de R$ 16 bilhões, quase US$ 9 bilhões ao câmbio de hoje. Para que desfrutasse das mesmas condições que os europeus, os agricultores brasileiros deveriam ter recebido algo como US$ 4 bilhões do Tesouro.

Se estes pagamentos diretos se distribuíssem de maneira mais ou menos equânime entre os 7 milhões de agricultores como forma de remunerá-los pela oferta de bens públicos não remunerados pelo mercado, seria muito difícil criticar a posição européia. O problema é que os pagamentos diretos vão à minoria dos agricultores que produzem sobretudo grãos e carnes, em grandes superfícies territoriais, que não contribuem para a existência de um meio rural mais povoado, menos poluído e mais bonito e cujos resultados produtivos chegam ao mercado não por seus méritos competitivos, mas pelo apoio estatal que recebem.

Num livro de 1996, Bertrand Hervieu, importante assessor do Gabinete do Ministro da Agricultura do Governo Socialista e atual presidente do Instituto Nacional da Pesquisa Agronômica (INRA) resume o ponto de vista da opinião pública francesa a respeito da atual política agrícola eurropéia: “As ajudas atuais dirigem-se para as grandes planícies vazias de homens, arações profundas ou em direção às criações intensivas com suas conseqüências preocupantes para a saúde humana ou para a preservação dos equilíbrios ecológicos. Ora nenhuma nem outra destas agriculturas criam as paisagens que nos atraem. No momento o que salva as políticas agrícolas é a mistura de palavras, quando alguns pensam campos, visualizam, sem dúvida, os lugares das pequenas explorações pouco ajudadas, enquanto que, nos escritórios dos ministérios e dos sindicatos profissionais, quando se pensa campo e subvenção olha-se para outro lugar. Um dia, sem dúvida, esta divergência vai acentuar-se e retirar a legitimidade das políticas agrícola”.

Ricardo Abramovay é professor livre-docente do Departamento de Economia da FEA e do Programa de Ciência Ambiental (PROCAM/USP)

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