Assentamentos: desarmar a lógica destrutiva

A distribuição de ativos para populações vivendo em situação de pobreza é a mais importante premissa para sua emancipação social.

Artigo publicado no jornal Folha de São Paulo – 20/10/04 – Caderno Dinheiro p. 2

A distribuição de ativos para populações vivendo em situação de pobreza é a mais importante premissa para sua emancipação social. O pensamento econômico dos anos 1990 reúne imensa quantidade de trabalhos mostrando que a capacidade de o crescimento econômico reduzir a pobreza é tanto menor quanto maior a desigualdade das sociedades em que ele ocorre. Talvez a maior preocupação do processo de desenvolvimento atual esteja em juntar os dois termos que, convencionalmente, a economia coloca como antagônicos: eqüidade e eficiência.

O acesso à terra é uma fantástica oportunidade neste sentido. Sua premissa básica é que unidades produtivas ao alcance das capacidades de trabalho de uma família podem afirmar-se economicamente e ser, portanto, um fator de geração sustentável de renda. É claro que para isso são necessárias condições de acesso a mercados dinâmicos, a crédito, a informações, a educação e a tecnologias.

Os dilemas atuais enfrentados pela política nacional de assentamentos originam-se na maneira como os atores envolvidos neste processo concebem e executam as condições em que são ou deveriam ser atribuídos estes recursos às populações beneficiárias. As instituições – as normas, valores, expectativas, modelos mentais e, sobretudo, as configurações de interesses e relações – desta área acabaram adquirindo um certo formato organizacional que joga sistematicamente os governos e os movimentos em impasses dos quais não têm como sair e cujo resultado social é profundamente destrutivo.

Um paralelo talvez permita organizar os critérios que devem pautar esta discussão. As melhores organizações de microcrédito urbano orgulham-se não apenas por fazer chegar os recursos de que dispõem aos mais pobres, mas, sobretudo, que estes recursos sejam devolvidos e que eles sirvam, de fato, para reduzir a pobreza.

Estas organizações constroem-se com base numa espécie de cadeia de responsabilidades: o tomador do empréstimo sabe que o não pagamento terá conseqüências não só quanto a sua imagem na comunidade em que vive, mas junto à agência que lhe emprestou o dinheiro. O agente de crédito também tem seu desempenho ‑ capacidade de emprestar, de receber e de acompanhar o que fazem as famílias ‑ monitorado de perto. E a organização como um todo faz esforços para reduzir seus custos, para aumentar sua eficiência e para que seus ganhos de produtividade (quantidade de tomadores por agente de crédito) revertam em benefício dos tomadores. O atendimento a uma necessidade social – crédito para quem não consegue chegar ao sistema bancário – é feito em condições que procuram respeitar as exigências da racionalidade econômica.

O processo brasileiro de assentamentos nunca se apoiou numa cultura de avaliação. Contrariamente ao que ocorre, por exemplo, no microcrédito urbano, suas instituições não contemplam e não valorizam as responsabilidades dos indivíduos em toda sua cadeia de realizações, do acampado, ao INCRA. O processo de assentamentos está pautado por uma exigência justa, mas que contém perigosa armadilha: é necessário atribuir um conjunto de fatores aos que estão em situação de pobreza para que possam melhorar sua situação social. Mas ele não sinaliza aos atores que os recursos para esta atribuição são escassos e, sobretudo, que ela deve apoiar-se em contrapartidas, compromissos e responsabilidades.

A única avaliação a que parece submeter-se o processo é a mais destrutiva e se traduz na guerra de números da qual o atual Governo não conseguiu escapar. Tudo se passa como se o sucesso do sistema dependesse da quantidade de trabalhadores assentados. Por aí se produz uma dinâmica perversa: os movimentos sociais estimulam acampamentos e acenam, evidentemente, aos acampados o horizonte de que o resultado de seus sacrifícios será compensado pela obtenção da terra. O acampamento hoje é vivido, por seus participantes, com base no cálculo do custo de oportunidade de viver sob a lona em contraposição a ganhos minguados na condição de diarista. Viver sob a lona é compensador pelo horizonte de obter terra. Esta dinâmica impede que o processo de seleção das famílias responda a critérios de qualidade. Pior: ela se apóia na certeza de que a terra não terá que ser paga e portanto induz a que seja vivida pelos beneficiários antes de tudo como patrimônio e não como base produtiva. A alta evasão dos assentamentos deve ter alguma relação – embora isso não explique tudo ‑ com esta dinâmica perversa.

É claro que os movimentos sociais desejam que a terra seja um elemento produtivo e se esforçam ao máximo para isso. Não há dúvida também de que são muitos os assentamentos que conseguem uma significativa inserção local. Mas o processo atual não contém mecanismos de incentivo que condicionem a atribuição das terras às possibilidades de que os resultados dos assentamentos sejam, presumivelmente, positivos. Muitas vezes o são. Mas não há uma cadeia de responsabilidades pela qual se possa entender as razões de tantos casos mal sucedidos. O diagnóstico costuma ser sempre o mesmo: o insucesso se deve ao fato de o Governo não ter feito o que lhe competia. É um diagnóstico equivocado e que conduz a uma forma de ação suicida para todas as partes. A lógica não pode ser a de assentar e pressionar para que o governo faça o que, em tese, lhe compete.

Uma lógica construtiva deveria nortear-se por uma nova contratualização do processo como um todo: a implantação do assentamento e seus resultados seriam avaliados e os produtos desta avaliação trariam conseqüências para os atores. Não se pode subestimar a importância dos movimentos e das organizações nesta luta estratégica. Mas hoje, os beneficiários (as famílias) não têm qualquer responsabilidade: os movimentos são mais do que representantes organizados das famílias. Eles são os protagonistas de um contrato do qual as famílias estão virtualmente ausentes. Este formato é uma permanente fonte de conflitos e inibe as capacidades e responsabilidades das próprias famílias. Pior: impede que a sociedade possa saber se o uso dos recursos para assentar foi o melhor meio de consagrar seus esforços na luta contra a pobreza.

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