A insustentável leveza da desmaterialização global

Quando se calcula a pegada material do consumo o mundo se torna muito menos homogêneo e plano do que se poderia imaginar

Artigo publicado no jornal Folha S. Paulo de 21 de outubro de 2013:

http://www1.folha.uol.com.br/empreendedorsocial/colunas/2013/10/1359013-a-insustentavel-leveza-da-desmaterializacao-global.shtml

A economia mundial está cada vez mais pesada. No início do milênio a humanidade extraía da superfície terrestre nada menos que 60 bilhões de toneladas de apenas quatro tipos de materiais: biomassa, minerais metálicos, minerais não metálicos e combustíveis fósseis. Para tornar mais palpável essa cifra gigantesca, basta dizer que o uso de materiais chegava a 9 toneladas anuais por habitante em média, ou seja, 120 vezes o peso de uma pessoa de 75 quilos. No relatório do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente “‘[(Pnuma) de 2011, em que esses dados foram apresentados, o diretor-executivo do programa, Achim Steiner, preconizava uma redução desse montante médio de de 9 para 6 toneladas até 2050, sob pena de colapso na capacidade de oferecer os bens e os serviços necessários à reprodução social.

O que aconteceu durante a primeira década do milênio? Esse peso aumentou ainda mais e chegou a 70 bilhões de toneladas. Passamos de 9 para 10 toneladas per capita em uma década. O principal vetor dessa explosão, segundo um novo trabalho do Pnuma, encontra-se nos grandes países em desenvolvimento. A região da Ásia e do Pacífico (onde estão China e Índia) consumia 10 bilhões de toneladas de materiais em 1980 (à época, menos de um terço do consumo global). Hoje ela entra com 40 bilhões de toneladas, mais da metade do total.

A taxa de metabolismo (o consumo de matéria, energia e recursos bióticos comparado com a riqueza social) da economia asiática é crescente. Na década de 1980, o PIB da região aumentou 4,2% ao ano, diante de uma elevação no consumo de materiais de 4,8% anuais. A diferença pode parecer pequena, mas ao longo do tempo produz efeitos imensos.

“Journal of Industrial Ecology” publicou um número especial sobre o tema, mostrando a pressão do crescimento dos maiores países em desenvolvimento sobre os recursos globais. O consumo chinês de materiais aproxima-se, hoje, dos níveis europeus, com 14 toneladas per capita. Trinta e cinco anos atrás essa cifra não chegava a duas toneladas per capita. Segundo o trabalho, a taxa metabólica do Brasil dobrou nos últimos 35 anos aproximando-se do atual nível chinês.

E os países desenvolvidos? Tanto os trabalhos do Pnuma como os artigos do “Journal of Industrial Ecology” sustentam que suas taxas metabólicas são relativamente estáveis, pois nessas economias a expansão do consumo apoia-se no aumento da produtividade. Com isso, a riqueza poderia ser oferecida com o emprego de uma quantidade cada vez menor de materiais. Essas sociedades estariam apontando o caminho para o futuro, desacoplando os bens e serviços oferecidos da base material, energética e biótica em que eles se apoiam.

A se confirmar essa hipótese, a economia global estaria passando, ao menos nos países mais desenvolvidos do planeta, por um salutar processo de desmaterialização que indicaria de forma estrategicamente decisiva o rumo do desenvolvimento sustentável. Nesse caso, graças ao avanço da ciência e da tecnologia, o crescimento econômico poderia persistir, sem ir além das fronteiras ecossistêmicas cuja ultrapassagem ameaça a vida social.

Infelizmente, porém, essa hipótese foi refutada por um trabalho fundamental que acaba de ser publicado pela prestigiosa Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS)dos EUA. Os cálculos levados adiante até aqui nos trabalhos do Pnuma e nos que compõem o número do “Journal of Industrial Ecology” tinham por base a relação entre o PIB de cada país e a extração nacional dos materiais necessários à sua reprodução (menos as exportações e mais as exportações destes materiais). No entanto, eles não contabilizavam o peso contido nos produtos industrializados que esses países importavam. Ora, ninguém ignora que em quase todos os países desenvolvidos a indústria sofreu um deslocamento, sobretudo em direção à China. Mas o consumo dos habitantes das nações mais ricas do planeta não diminuiu.

O artigo da PNAS calculou a pegada material (material footprint) da economia global. Trata-se de saber não quanto um país extrai de sua própria superfície daqueles quatro materiais acima citados e sim qual o peso dos materiais contidos no que o país efetivamente consome, mesmo que estes materiais tenham vindo de outro lugar: o ferro que o Brasil exporta para a China e que entra no iPad vendido para a Grã-Bretanha é por essa abordagem contabilizado como pegada material do consumo britânico.

E aí a leveza material do mundo rico se desmancha. O desacoplamento entre a riqueza e sua base material e energética ocorreu em proporção muito menor do que parecia. O uso de materiais retirados domesticamente no mundo desenvolvido se reduz porque estes materiais foram extraídos e transformados em outros países e não porque o progresso técnico tenha tornado a economia mais leve.

O resultado é que quando se calcula a pegada material do consumo o mundo se torna muito menos homogêneo e plano do que se poderia imaginar. De fato, o total do consumo chinês de materiais, é o dobro do norte-americano e quatro vezes o japonês. Mas o consumo per capita de materiais dos chineses não chega a metade do norte-americano. A parcimônia no uso de materiais por parte dos japoneses é só aparente: sua pegada material é quase igual à dos americanos, da mesma forma que a dos britânicos. Dos 16,3 bilhões de toneladas de materiais que os chineses usam, nada menos que 7,3 bilhões corresponde ao que exportam, ou seja, ao consumo de pessoas vivendo em outros países.

É, portanto, imenso o peso da pegada material das economias mais ricas do mundo, quando o comércio internacional é inserido no cálculo de seu metabolismo social. Essa revelação inédita mostra que aumentar a eficiência do sistema produtivo contemporâneo é fundamental, mas não afasta a urgente necessidade de repensar os padrões de consumo e o próprio sentido daquilo que o sistema econômico oferece à vida social.

Ricardo Abramovay é professor-titular do Departamento de Economia da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade e do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo. Também é autor do e-book “Lixo Zero – Gestão de Resíduos Sólidos para uma Sociedade Mais Próspera”.
Twitter: @abramovay


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